São Paulo, domingo, 19 de setembro de 2004

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EUROPA

Ancara, que quer entrar na UE, diz que a crítica do bloco à sua intenção de criminalizar a infidelidade é "ingerência"

Adultério ameaça diálogo entre Turquia e UE

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

A controversa questão da introdução de uma lei que criminaliza o adultério na reforma do Código Penal da Turquia ameaça dificultar o início das negociações do país com a União Européia, visando sua eventual entrada no bloco.
Anteontem, o premiê turco, Recep Tayyip Erdogan, atacou a interferência européia e afirmou que "ninguém tem o direito de ingerir em questões domésticas" turcas nem no "modo de funcionamento do Parlamento" do país.
Para Günter Verheugen, comissário europeu responsável por temas ligados à expansão do bloco, a questão é "bastante delicada".
"A Turquia precisa aprovar um novo Código Penal, pois essa medida é a pedra angular de seus esforços de aproximação à UE. Afinal, ela garantirá a consolidação do Estado de Direito no país", declarou, anteontem, Verheugen.
De acordo com especialistas consultados pela Folha, a questão da criminalização do adultério divide o governo turco, composto por membros do Partido da Justiça e do Desenvolvimento -movimento conservador com raízes no islã político. Assim, ao defender a autonomia turca, Erdogan estaria fazendo política interna, buscando acalmar os ânimos dentro de seu próprio partido.
"Creio que o governo tenha insistido na possibilidade de criminalizar o adultério para contentar sua ala radical e para desviar a atenção de outros pontos críticos da reforma do Código Penal. Afinal, ele será bastante liberalizado. O governo pode, portanto, ter usado essa questão para desviar a atenção do restante do projeto", analisou Ilter Turan, professor da Universidade Bilgi de Istambul.
De fato, segundo o projeto de lei apresentado no Parlamento e depois retirado da pauta, o novo Código Penal deverá fortalecer os direitos das mulheres e a liberdade de expressão, além de aumentar as punições em casos de estupro e de "crimes de honra" -o assassinato de mulheres cometido por parentes do sexo masculino para proteger o nome da família.
De acordo com Anne-Marie Le Gloannec, diretora do Centro Marc Bloch, um instituto de pesquisas franco-alemão de Berlim, a reforma do Código Penal é vital para que a Comissão Européia recomende aos Estados-membros da UE a abertura de negociações com a Turquia. A comissão deverá entregar um relatório sobre o assunto em 6 de outubro.
"Os crimes de honra, os direitos das mulheres e a proteção dos direitos humanos são cruciais para a UE. No que tange à sua eventual entrada no bloco, o problema da Turquia para muitas autoridades européias é que, de um lado, há Istambul e, do outro, a Anatólia", apontou Le Gloannec.
"Se a questão fosse apenas integrar ao bloco europeu os habitantes de Istambul, não haveria grandes obstáculos, visto que sua elite é bastante influenciada pela cultura ocidental. Os maiores problemas são os "crimes de honra" da Anatólia e a cultura que permite que eles existam", acrescentou.
Para ela, a reforma do Código Penal é essencial, pois mostrará que Ancara não abandonou a via da adaptação de suas leis à legislação européia. Caso contrário, isso daria munição aos que defendem que a cultura turca é distante demais da européia, o que, segundo eles, impediria uma verdadeira integração de sua população.
"Nunca a UE foi tão exigente com um candidato à adesão. E nunca suas exigências foram tão bem recebidas pela população e pelas autoridades de um país", afirmou Le Gloannec.
Turan concorda com sua análise. "Embora ainda haja na UE uma preocupação com o fato de a maioria da população turca ser muçulmana, as autoridades européias reconhecem os grandes esforços já feitos por Ancara."
"No que concerne aos critério de Copenhague, relacionados à democracia e ao Estado de Direito, as inquietações européias sobre o peso dos militares na sociedade turca, os direitos humanos e das minorias e a tortura nas delegacias e prisões foram tratadas com muito carinho pelo governo turco", acrescentou Turan.
"Há ainda, indubitavelmente, o problema da aplicação das novas leis aprovadas no Parlamento, mas isso será resolvido com o tempo. O problema de Erdogan é que seu governo não pode negligenciar a ala mais radical de seu partido, que tem fortes raízes islâmicas. Assim, ele é obrigado a ser cuidadoso, o que, às vezes, não é compreendido pelos europeus", completou o professor turco.
Com efeito, Ancara já permite cursos da língua curda e programas de rádio em curdo. Ademais, houve um esforço de redução do papel dos militares na sociedade, e a defesa dos direitos humanos passou a "ser prioritária para o governo", segundo Erdogan.

Demografia e economia
Para Turan, os dois maiores entraves ao início das negociações da Turquia com a UE são de ordem prática, não cultural.
"A Turquia será o maior país do bloco quando as negociações estiverem concluídas, provavelmente em 2015. Ora, de acordo com a nova Constituição européia, ela seria o país mais poderoso da UE, o que é inconcebível. Assim, será preciso reformar as leis européias para que sua entrada não gere um choque de interesses", analisou.
"Ademais, a economia turca é relativamente grande, mas a renda per capita do país é mais baixa que a de todos os atuais membros do bloco. Haverá, portanto, um custo de integração muito elevado, o que forçará os europeus a alterar a Política Agrícola Comum e o modo como os fundos de integração e estruturais serão distribuídos", afirmou Turan.
Este não crê, contudo, que haja um risco de "islamização" da cena política da Turquia caso a UE não abra suas portas para ela. "A vida secular já está consolidada. Não será fácil mudar esse quadro."
De acordo com pesquisas recentes, ao menos 70% da população turca é favorável à adesão do país ao bloco europeu.


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