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EUROPA
Ancara, que quer entrar na UE, diz que a crítica do bloco à sua intenção de criminalizar a infidelidade é "ingerência"
Adultério ameaça diálogo entre Turquia e UE
MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO
A controversa questão da introdução de uma lei que criminaliza
o adultério na reforma do Código
Penal da Turquia ameaça dificultar o início das negociações do
país com a União Européia, visando sua eventual entrada no bloco.
Anteontem, o premiê turco, Recep Tayyip Erdogan, atacou a interferência européia e afirmou
que "ninguém tem o direito de ingerir em questões domésticas"
turcas nem no "modo de funcionamento do Parlamento" do país.
Para Günter Verheugen, comissário europeu responsável por temas ligados à expansão do bloco,
a questão é "bastante delicada".
"A Turquia precisa aprovar um
novo Código Penal, pois essa medida é a pedra angular de seus esforços de aproximação à UE. Afinal, ela garantirá a consolidação
do Estado de Direito no país", declarou, anteontem, Verheugen.
De acordo com especialistas
consultados pela Folha, a questão
da criminalização do adultério divide o governo turco, composto
por membros do Partido da Justiça e do Desenvolvimento -movimento conservador com raízes
no islã político. Assim, ao defender a autonomia turca, Erdogan
estaria fazendo política interna,
buscando acalmar os ânimos
dentro de seu próprio partido.
"Creio que o governo tenha insistido na possibilidade de criminalizar o adultério para contentar
sua ala radical e para desviar a
atenção de outros pontos críticos
da reforma do Código Penal. Afinal, ele será bastante liberalizado.
O governo pode, portanto, ter
usado essa questão para desviar a
atenção do restante do projeto",
analisou Ilter Turan, professor da
Universidade Bilgi de Istambul.
De fato, segundo o projeto de lei
apresentado no Parlamento e depois retirado da pauta, o novo Código Penal deverá fortalecer os direitos das mulheres e a liberdade
de expressão, além de aumentar
as punições em casos de estupro e
de "crimes de honra" -o assassinato de mulheres cometido por
parentes do sexo masculino para
proteger o nome da família.
De acordo com Anne-Marie Le
Gloannec, diretora do Centro
Marc Bloch, um instituto de pesquisas franco-alemão de Berlim, a
reforma do Código Penal é vital
para que a Comissão Européia recomende aos Estados-membros
da UE a abertura de negociações
com a Turquia. A comissão deverá entregar um relatório sobre o
assunto em 6 de outubro.
"Os crimes de honra, os direitos
das mulheres e a proteção dos direitos humanos são cruciais para
a UE. No que tange à sua eventual
entrada no bloco, o problema da
Turquia para muitas autoridades
européias é que, de um lado, há
Istambul e, do outro, a Anatólia",
apontou Le Gloannec.
"Se a questão fosse apenas integrar ao bloco europeu os habitantes de Istambul, não haveria grandes obstáculos, visto que sua elite
é bastante influenciada pela cultura ocidental. Os maiores problemas são os "crimes de honra" da
Anatólia e a cultura que permite
que eles existam", acrescentou.
Para ela, a reforma do Código
Penal é essencial, pois mostrará
que Ancara não abandonou a via
da adaptação de suas leis à legislação européia. Caso contrário, isso
daria munição aos que defendem
que a cultura turca é distante demais da européia, o que, segundo
eles, impediria uma verdadeira
integração de sua população.
"Nunca a UE foi tão exigente
com um candidato à adesão. E
nunca suas exigências foram tão
bem recebidas pela população e
pelas autoridades de um país",
afirmou Le Gloannec.
Turan concorda com sua análise. "Embora ainda haja na UE
uma preocupação com o fato de a
maioria da população turca ser
muçulmana, as autoridades européias reconhecem os grandes esforços já feitos por Ancara."
"No que concerne aos critério
de Copenhague, relacionados à
democracia e ao Estado de Direito, as inquietações européias sobre o peso dos militares na sociedade turca, os direitos humanos e
das minorias e a tortura nas delegacias e prisões foram tratadas
com muito carinho pelo governo
turco", acrescentou Turan.
"Há ainda, indubitavelmente, o
problema da aplicação das novas
leis aprovadas no Parlamento,
mas isso será resolvido com o
tempo. O problema de Erdogan é
que seu governo não pode negligenciar a ala mais radical de seu
partido, que tem fortes raízes islâmicas. Assim, ele é obrigado a ser
cuidadoso, o que, às vezes, não é
compreendido pelos europeus",
completou o professor turco.
Com efeito, Ancara já permite
cursos da língua curda e programas de rádio em curdo. Ademais,
houve um esforço de redução do
papel dos militares na sociedade,
e a defesa dos direitos humanos
passou a "ser prioritária para o
governo", segundo Erdogan.
Demografia e economia
Para Turan, os dois maiores entraves ao início das negociações
da Turquia com a UE são de ordem prática, não cultural.
"A Turquia será o maior país do
bloco quando as negociações estiverem concluídas, provavelmente
em 2015. Ora, de acordo com a
nova Constituição européia, ela
seria o país mais poderoso da UE,
o que é inconcebível. Assim, será
preciso reformar as leis européias
para que sua entrada não gere um
choque de interesses", analisou.
"Ademais, a economia turca é
relativamente grande, mas a renda per capita do país é mais baixa
que a de todos os atuais membros
do bloco. Haverá, portanto, um
custo de integração muito elevado, o que forçará os europeus a alterar a Política Agrícola Comum e
o modo como os fundos de integração e estruturais serão distribuídos", afirmou Turan.
Este não crê, contudo, que haja
um risco de "islamização" da cena
política da Turquia caso a UE não
abra suas portas para ela. "A vida
secular já está consolidada. Não
será fácil mudar esse quadro."
De acordo com pesquisas recentes, ao menos 70% da população turca é favorável à adesão do
país ao bloco europeu.
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