São Paulo, domingo, 19 de setembro de 2004

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ARTIGO

A rota do apocalipse passa por Beslan

É inútil especular sobre os motivos que animam os terroristas; esses assassinos de crianças são os piores assassinos, são inimigos da humanidade, uma escumalha que saboreia a sensação "viva e deliciosamente perversa" que o sangue derramado propicia

Os governos democráticos estão permitindo a criminalização racista de toda uma nação: tchetchenos = assassinos de crianças = Bin Laden. Será que eles conhecem o cotidiano de dor, o horror dos vermes humanos, a caçada humana e o comércio de cadáveres?


ANDRÉ GLUCKSMANN
ESPECIAL PARA O "LE MONDE"

Aqueles que vivem o fim do mundo não o vêem, aqueles que o vêem não mais o vivem, mas se sentem condenados a meditar a respeito, mesmo que a contragosto, até o limite da náusea. Um menino usando um boné grande demais para ele, ostentando ao peito a estrela amarela, cai, mãos estendidas para o alto, no meio do gueto de Varsóvia; uma menininha vietnamita em chamas foge do napalm que a envolve; as vírgulas distantes, mas ainda assim por demais humanas, se lançam das torres em Manhattan.
E hoje, crianças ensangüentadas e desorientadas, usando apenas roupas de baixo, tentam fugir do fogo cruzado no ginásio de Beslan. Mais alguns testemunhos do abismo que me acompanharão até o túmulo.
Já há 10 anos previ os piores desastres caso a suja guerra da Tchetchênia fosse levada adiante. As crianças mortas em Beslan me deixam inconsolável, abalado, desarmado, como todos nós, ao descobrir nos olhos enlouquecidos de um refém que o impossível se tornou possível.
Essas imagens não nos deixarão. São proféticas. O dispositivo apocalíptico que se desenrolou diante de nossos olhos em 3 de setembro é um portento do futuro. Um futuro abominável. Como um malévolo míssil de três estágios apontado não somente contra o Cáucaso e a Rússia, mas contra toda a Europa.
1. Beslan é a mais louca das operações de captura de reféns da história. Pela quantidade de vítimas, mas ainda mais pela qualidade de absoluta crueldade que ela manifesta.
Aqueles que envolvem centenas de crianças com guirlandas de explosivos, que as ameaçam de morte caso chorem e que as reduzem a beber a própria urina, não recuarão diante de nada. E, especialmente, não recuarão diante do inferno. Hoje, uma escola inteira capturada, amanhã uma usina nuclear detonada? É possível, porque esses terroristas não temem a morte, dos outros ou a própria.
É inútil especular sobre os motivos celestiais ou terrestres que os animam; devem ser julgados pelos seus atos: esses assassinos de crianças são os piores assassinos, são inimigos da humanidade, uma escumalha que saboreia a sensação "viva e deliciosamente perversa" que o sangue derramado propicia, como diz Varlam Chalamov (por 20 anos prisioneiro do gulag). A primeira figura do caos.
Quem forma esse comando de matadores? "Os tchetchenos", disseram as autoridades russas, antes de terem visto um só deles. Dois dias mais tarde, Sergei Ivanov, ministro da Defesa de Putin, alegaria: "Nenhum tchetcheno no comando". Pouco confiável. "Dez árabes. Um negro. Um coreano, georgianos, tártaros e cazaques", anunciaram mais tarde diversos funcionários do governo, tampouco aduzindo provas.
Auschev, antigo presidente da Inguchétia, demitido por Putin, a única pessoa que teve a coragem de entrar na escola para negociar, sem ordens, com os seqüestradores, disse ter visto um grupo multiétnico, com pessoas da Inguchétia, da Ossétia e eslavos (russos?, ucranianos?).
O presidente Maskhadov, que favorece a independência da Tchetchênia, imediatamente condenou o atentado e pediu um inquérito internacional. Até mesmo o criminoso Basayev, que assumiu a responsabilidade por outras grandes operações que resultaram na captura de muitos reféns, negou, na época, qualquer envolvimento [na sexta-feira, uma mensagem em nome de Basayev disse que o líder tchetcheno comandou a operação].
Putin acusou o "terrorismo internacional" e deixou de mencionar a palavra "Tchetchênia"; exigiu solidariedade internacional, mas recusou qualquer assistência externa para as investigações. A oferta de ajuda da Interpol foi rejeitada.
Putin chegou ao extremo cínico de elogiar o heroísmo da Tchetchênia, diante de especialistas estrangeiros: "Não há parte de nossa terra que disponha de tantos heróis".
Em paralelo, o Kremlin, oferecendo uma recompensa pela cabeça de Maskhadov, não perdeu a ocasião de estigmatizar toda uma população. E assim temos um povo que, massacrado por dez anos, agora é apontado como autor de massacres. Alguns tchetchenos, entre outros, talvez sim; os tchetchenos como povo, decerto não!
2. Diante desse comando niilista, que nada e ninguém, eu menos ainda, será capaz de desculpar, justificar compreender, há um segundo componente do caos, Putin e suas forças da ordem que "libertaram" um ginásio lotado de crianças usando para isso metralhadoras e lança-chamas. Não era preciso uma decisão explícita de lançar o ataque; bastava perceber a completa falta de tentativas para fatigar, dividir e isolar os seqüestradores. "Negociar é sinal de fraqueza", disse Putin.
A fagulha que deflagrou o ataque surgiu por acaso. Uma bomba que explodiu? Pais desesperados que tentaram recuperar os filhos por conta própria? As tropas da spetsnaz (forças especiais russas), armadas até os dentes, imediatamente atravessaram a brecha e saíram atirando para todos os lados. Esse desprezo enorme pelo "material humano" -dessa vez as crianças, recentemente os espectadores do teatro em Dubrovka- é uma herança brutal e constante dos czares e de Stálin. Cabe ao poder exercer a força.
Quando Putin invadiu a Tchetchênia, em 1999, seu objetivo era expulsar 2.000 terroristas. Ele usou bombardeiros, tanques e 100 mil soldados no ataque a um país minúsculo, com menos de um milhão de habitantes. Devastou Grozni (400 mil habitantes). Se carnificina dessa ordem é necessária para a "luta contra o terrorismo", temos de perguntar por que os ingleses não demoliram Belfast, por que os espanhóis não demoliram Bilbao e por que os franceses não demoliram Argel, para capturar Ali La Ponte e seus asseclas.
A selvageria do FSB [polícia que sucedeu à KGB] está evidente em Beslan, como em toda a Tchetchênia. "Uma vez agente secreto, sempre agente secreto", é o lema do dono atual do Kremlin, que trabalhou para o serviço secreto soviético.
3. Todos temos parte nesse desastre. Nenhum governo ocidental ousou contestar os objetivos desse bombeiro piromaníaco que, em cinco anos de guerra, não conseguiu "lançar os terroristas ralo abaixo", mesmo que incendiasse casas, cidades e aldeias, semeando o caos em todo o Cáucaso. A Europa e os Estados Unidos lhe deram carta-branca e lutam por sua amizade. Um caso claro de estupidez.
Recordemos que a questão do Iraque colocou em confronto "duas visões de mundo". Paris e o "partido da paz" afirmavam que o terrorismo era filho da guerra, a qual, por isso, deveria ser evitada. Washington e seus aliados proclamavam que a opressão é a causa do terrorismo, e que portanto a liberdade é a mãe da paz: uma guerra em seu nome poderia se fazer necessária.
Ninguém ignora que a população da Tchetchênia foi reduzida em 20% ou 25%. Para aqueles que carecem de imaginação, basta perceber que, no caso da França, isso equivaleria a entre 10 milhões e 15 milhões de habitantes. A Tchetchênia sofreu a pior das guerras recentes: 40 mil crianças mortas, sem câmeras de televisão, em meio à noite e à bruma. A arbitrariedade mais extremada governa, sem regras, aquilo que a jornalista russa Anna Politkovskaia define como "um campo de concentração a céu aberto", um país inteiro sob domínio da força, ao qual o acesso de câmeras é interditado, e onde só alguns repórteres especialmente corajosos penetram.
É uma bela ocasião para que as "duas visões do mundo" cantem em uníssono e honrem os princípios que dizem representar: o calvário da Tchetchênia atende aos dois critérios. Três séculos de opressão criaram a rebelião. A selvageria da mais recente guerra favorece o terrorismo. É mais que hora de puxar Putin pela manga e explicar, da parte de Paris, que essa guerra engendra o caos niilista; o mesmo se aplica a Washington, quanto à opressão russa. Mas nada disso acontece. Os grandes príncipes estão perdidos. A política do avestruz triunfa, cabeça enterrada na areia, e os poderosos do mundo nada desejam ver.
Será que se esqueceram com tanta rapidez do que aconteceu no Afeganistão? Por mais de 10 anos, o Exército russo, então ainda conhecido como "Vermelho", exercitou seus talentos destrutivos no Afeganistão: território devastado, povo dizimado, estruturas sociais, mentais e morais decompostas; aproveitando o caos, surgiram os bandidos, os mais fanáticos dos quais formavam o Taleban, e com eles Bin Laden, e as torres de Manhattan em chamas.
O Ocidente cego abandonou o comandante Massoud, inimigo dos soviéticos e dos radicais. O erro foi percebido tarde demais. Ele só se tornou ícone quando morreu.
Na Tchetchênia existe um chefe independente moderado, Aslan Maskhadov, que sempre condenou atentados contra civis. Desde o início do ataque contra Beslan, ele proclamou seu horror diante do crime, e ofereceu seus serviços. As autoridades russas preferiram o ataque à mediação.
Como Massoud, trata-se de um bom estrategista, vencedor do imenso Exército russo em 1996. Como Massoud, ele é um herói para o seu povo. Como Massoud, não é um santo, porque ocasionalmente cometeu o pecado de fazer causa comum com os extremistas, em nome da unidade nacional. Mas, como Massoud no Afeganistão, na Tchetchênia ele é o único aliado de nossas democracias. É com ele, eleito presidente por 67% dos votos, que se deve negociar uma paz inimiga do terrorismo.
Já há dois anos Maskhadov vem propondo um plano: cessar-fogo, desarmamento das milícias independentes, retirada das forças russas, uma força de observação internacional e o abandono provisório da reivindicação de independência. Sem a ajuda dele, nada a fazer. A não ser o caminho russo: a opção pelo extermínio. Ou o caminho dos extremistas tchetchenos: a expansão do niilismo.
Como explicar a irresponsabilidade de nossos responsáveis? Os governos democráticos estão permitindo a criminalização racista de toda uma nação: tchetchenos = assassinos de crianças = Bin Laden. Será que eles conhecem o cotidiano de dor, de opressão, de tortura, o horror dos vermes humanos, os campos de triagem, os desaparecidos, as caçadas humanas e o comércio de cadáveres? Sim, eles sabem de tudo isso. Será que são crédulos a ponto de confiar em Putin e engolir a afirmação de que a paz e a "normalização" reinam na Tchetchênia? Será que ignoram que uma Tchernobil proposital não poupará ninguém? Não acredito em tamanha burrice, de parte dos príncipes que nos representam. É forçoso supor que eles confiam nossa segurança ao aprendiz de feiticeiro do Kremlin.
Será que esperam, talvez sem se dar conta, que ele consiga exterminar os tchetchenos antes que os sobreviventes fechem seu pacto final com o demônio do niilismo? Aprovar uma guerra sem fim é notavelmente imoral e, acima de tudo, constitui uma aberração política.
Depois de tantos massacres, e à luz sombria do que aconteceu em Beslan, a retórica guerreira de Putin revela o que ele é: um açougueiro caótico, um fabricante do apocalipse. Chegou a hora, enquanto Maskhadov ainda é vivo, de chamar Putin à ordem, de convidá-lo em alto e bom som a mudar de métodos.
Já há dez anos nossos dirigentes desprezam as indignações "morais". Já há dez anos eles se afirmam adeptos da "realpolitik". O mundo não vai parar de girar por conta de Grozni, não devemos antagonizar o gigante russo. Perdoem-me, mas sem princípios éticos não existe política de longo prazo. Moral e política não se dissociam como acreditam esses maquiavéis de subúrbio. A "política" da Airbus e dos hidrocarbonetos, do "estou pouco me lixando para o extermínio de um povo", chegou ao seu ponto alto em Beslan. Não se trata de política; trata-se de cegueira.
A "bela alma" da qual eles zombam e que eu assumo por, na companhia de raros amigos, ter combatido o fascismo negro, vermelho e verde e ter dado meu apoio a Solzhenitsin, Sakharov, Havel, Massoud, aos refugiados vietnamitas, aos moradores cercados em Dubrovnik e Sarajevo, aos cidadãos expulsos de Kosovo e aos argelinos perseguidos, todas as pessoas sem poder pelas quais os realistas não desperdiçariam um instante, minha lastimável "bela alma" diz que não se elimina impunemente um povo do mapa, por mais irrisório que ele pareça aos olhos de nossas grandes nações.


André Glucksmann é filósofo


Tradução de Paulo Migliacci


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