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São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003

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Moradores de bairros mais ricos, predominantemente brancos, temem cerco e organizam grupos de vigilância

Elite se protege contra "onda indígena"

DO ENVIADO ESPECIAL A LA PAZ

A indefinição política, a violência, a falta de produtos básicos, o medo da "onda indígena" vinda do interior e antecedentes históricos fizeram com que os assustados moradores de bairros de classe média e alta de La Paz, predominantemente brancos, organizassem comitês de segurança e trouxessem tropas de elite do Exército vindas de fora da capital.
Na zona sul da cidade, onde vive quase toda a elite econômica e política do país (inclusive o novo presidente, Carlos Mesa), médicos, engenheiros e empresários, entre outros, se organizaram em grupos de vigilância armados para proteger sua vizinhança.
Na última segunda-feira, um grupo de camponeses tentou entrar no bairro, mas foi impedido por uma barreira de Exército, que matou seis camponeses aymarás.
Depois desse conflito, muitos moradores abandonaram as casas mais isoladas do bairro.
No dia seguinte, a segurança foi reforçada pela chegada dos "rangers de Santa Cruz", tropa de elite sediada no leste do país. Havia o temor de que os soldados de La Paz -quase todos aymarás- poderiam mudar de lado. (Há rumores de que isso tenha ocorrido em El Alto, na região de La Paz, e em Patacamaya, a 100 km da capital, durante um enfrentamento com mineiros).
"Não me lembro de nenhum amigo que não tenha uma arma em casa", disse um comerciante alemão, dono de uma loja no centro de La Paz, que ficou fechada durante toda a semana.
Na última sexta-feira, um repórter de TV travou a seguinte conversa com a liderança de um grupo de manifestantes localizado no bairro periférico de Achachicala, por onde passa quase toda a água que abastece La Paz.
"Compadre, vocês estão aqui para garantir o fornecimento de água para La Paz, não?", pergunta o repórter branco.
"Estamos aqui para protestar contra o presidente assassino, compadre", responde o líder, que tem nome aymará.
"Mas, e a água? Está garantida, compadre?", insiste o repórter.
"Não se preocupe, não temos nada contra o povo de La Paz."
Segundo o último censo, os brancos formam apenas 15% da população. Os que se denominam indígenas representam cerca de 55% -o restante se considera "mestizo".

Buraco
Além dos protestos das últimas semanas, a sensação de que a cidade pode ser facilmente sitiada tem explicações geográficas e históricas. Apesar de ser a capital mais alta do mundo (3.500 metros acima do nível do mar), La Paz foi construída em uma espécie de buraco ("la hoyada"), cercada por montanhas geladas - muitas ultrapassam os 5.000 metros.
O acesso à cidade -sempre feito montanha abaixo- dá a impressão de um beco sem saída, além de deixar La Paz dependente de água e alimentos -produzidos justamente por indígenas do interior, que por isso não tem problemas de desabastecimento.
Além disso, mais ou menos como no Rio, os ricos vivem nos lugares mais baixos, enquanto os pobres ocupam os barrancos íngremes em volta da cidade.
Para o antropólogo Xavier Arbó, o temor é infundado e faz parte da memória coletiva da cidade. "Entre 1780 e 1781, os aymarás, liderados por Tupac Katari, cercaram La Paz durante seis meses. Desde então, sempre houve um temor de uma invasão indígena", disse à Folha.
Segundo o livro "História da Bolívia" -cujo autor é o novo presidente, Carlos Mesa, que originalmente é jornalista e historiador-, durante o cerco muitos espanhóis morreram de fome, mas os indígenas não conseguiram tomar a cidade por falta de armas.
Capturado, o líder indígena foi amarrado em cavalos e esquartejado em praça pública, na cidade de Penhas. A cabeça foi enviada a La Paz, onde ficou exposta.

Discurso
Esse "medo branco" é muitas vezes utilizado pelo líder indígena Felipe Quispe, mais conhecido na Bolívia como "el Malku" (o condor). Um dos principais líderes do movimento que levou à renúncia do presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, anteontem, ele também participou, no anos 80, de um pequeno movimento guerrilheiro de inspiração guevarista cujo nome era "Tupac Katari".
"Malku sempre quis sitiar La Paz", disse à Folha um segurança de um hotel de luxo, que não quis se identificar. Outro segurança disse que Malku faz isso para conseguir apoio indígena e intimidar a elite boliviana. "Quando ele não está dando entrevistas, fala normalmente, mas, na TV, força o sotaque e faz ameaças", diz.

Apartheid
A boliviana Maria Cruz Lespinasse, 58, que vive nos EUA desde os oito anos, vê semelhanças com a África do Sul da época do apartheid: "Comparo sempre a Bolívia com Soweto, na África do Sul. A desgraça é que a Bolívia não tem um Nelson Mandela", disse à Folha, enquanto comprava açúcar, no nobre bairro de San Jorge, onde moram seus pais.
Maria Cruz, que trabalha em uma agência de publicidade em Nova York, disse que um conflito era iminente. "Eu sabia que isso ocorreria. Os índios não podem continuar vivendo assim." (FM)



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