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São Paulo, domingo, 19 de outubro de 2003

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Só Chile e Uruguai não tiveram presidentes depostos por manifestações populares desde o início dos anos 90

Grito das ruas dá o tom na América do Sul

CLÓVIS ROSSI
Colunista da Folha

Com a queda de Gonzalo Sánchez de Lozada, a América do Sul marca mais um triste recorde na sua já triste história: desde o início dos anos 90, apenas Uruguai e Chile não tiveram presidentes depostos pelas ruas, ao contrário do modelo mais civilizado (o das urnas) ou o mais tradicional na sub-região (as armas).
O Peru conseguiu a façanha de testemunhar ambos os modelos: o então presidente Alberto Fujimori deu, em 1992, um autogolpe, para o qual é obviamente indispensável o apoio das Forças Armadas, apenas para ser destronado pelos protestos populares oito anos e uma reeleição depois.
O Brasil é, a rigor, o precursor do modelo em que a rua funciona como combustível essencial para trocar de presidente: também em 1992, Fernando Collor de Mello se tornou o primeiro presidente da tumultuada história latino-americana a sofrer um impeachment.
Ainda que a decisão formal tenha sido do Congresso -e impecável do ponto de vista institucional-, o fato é que, sem as manifestações de rua, dificilmente o desfecho teria sido esse.
Logo depois, em 1993, o venezuelano Carlos Andrés Pérez se tornou o segundo presidente a ser afastado pelo mecanismo do impeachment, depois de ter sobrevivido, no ano anterior, a uma tentativa de golpe à moda antiga (pela força das armas).
A Venezuela, aliás, assim como o Equador, é um caso de vitória tardia do golpista inicialmente frustrado. Quem liderou o golpe contra Andrés Pérez foi o coronel Hugo Chávez Frías, que, no entanto, acabaria chegando ao poder, sete anos depois, a bordo, aí sim, das urnas, não dos tanques.
Nem por isso, assegurou a governança: está sitiado por protestos de uma oposição crescente, que chegou a depô-lo por 72 horas, no ano passado. Agora mesmo, a oposição tenta encurtar o mandato de Chávez pelos meios constitucionais, ou seja, buscando um plebiscito que revogue o mandato do presidente, que acaba de chegar à metade.

Recorde da Argentina
No Equador, o beneficiário tardio de um golpe frustrado é o também coronel Lúcio Gutiérrez, presidente desde 2002. O levante militar de que Gutiérrez foi um dos líderes fez parte de uma sucessão interminável de incidentes institucionais que levaram o Equador a ter quatro presidentes em cinco anos (desde 1997).
Na Argentina, o recorde: Fernando de la Rúa foi forçado a fugir de helicóptero da Casa Rosada, a sede governamental, depois de um monumental "panelaço" de protesto, em 2001. Foi seguido por cinco presidentes em poucos dias, se contados os interinos, entre uma eleição (pelo Congresso) e outra.
Pode-se argumentar que a Colômbia também poderia ser incluída entre os países sul-americanos que seguem o modelo convencional pelo qual o presidente sai após cumprir a totalidade do mandato e é substituído por alguém eleito legitimamente.
É verdade, mas é apenas metade da verdade. Há pelo menos 40 anos, a Colômbia apenas institucionalizou a turbulência política, sufocada que é pela violência, seja ela comum, seja política.
É no mínimo discutível a chance de sobrevivência do atual governo sem o apoio (militar, logístico e financeiro) dos EUA, na forma do "Plano Colômbia" (no total, US$ 7,5 bilhões).
Restam Uruguai e Chile, que, no entanto, seguem trajetórias econômicas diferentes, quase opostas: o Chile, desde que a ditadura de Augusto Pinochet corrigiu o câmbio, em 1982, cresce continuamente. O Uruguai, ao contrário, está enterrado na mais dura recessão de sua história.

Menor desigualdade
Como seus governantes sobrevivem? A resposta completa demandaria um estudo sociológico mais profundo, mas uma primeira tentativa pode ser esta: são os dois países de menor desigualdade na região (depois que a Argentina sofreu um processo de polarização sem precedentes nos últimos anos).
São também países em que os partidos tradicionais têm raízes históricas e sociais talvez mais profundas.
Mais fácil é apontar a causa básica da "ingovernança" sul-americana: pobreza imensa e desigualdade de renda obscena.
São 220 milhões de pobres, dos quais 95 milhões são indigentes. E, na distribuição de renda, a América Latina é a mais desigual das regiões, conforme mostram, ano após ano, todos os levantamentos internacionais.
Consequência: o público busca nas urnas mais igualdade, escolhendo candidatos que a prometem. Como a promessa nunca é cumprida, resta o protesto de rua.



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