São Paulo, sábado, 19 de novembro de 2005

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IRAQUE SOB TUTELA

Pressa dos EUA em julgar Saddam Hussein e aprovar nova Carta pode aprofundar divisões entre facções

Estabilização afoita pode rachar Iraque

SHIBLEY TELHAMI

Passado de 2.000 o número de soldados americanos mortos no Iraque, o governo dos EUA continua a nutrir a esperança de que a aprovação da Constituição iraquiana e a abertura do julgamento de Saddam Hussein começarão a redimir sua política externa tão largamente criticada.
Desde que Saddam foi derrubado do poder, em abril de 2003, o governo Bush aguarda ansiosamente os dois acontecimentos, vendo neles sinais de que o Iraque estaria deixando a ditadura para trás e avançando rumo à democracia. A esperança era que os dois fatos inspirassem as pessoas não só no Iraque, mas em todo o Oriente Médio, a buscar mais democracia em seus países e enxergar algum bem advindo de uma guerra à qual a maioria se opôs.
Em lugar disso, tanto o plebiscito iraquiano sobre a Constituição quanto o julgamento de Saddam provavelmente irão intensificar o ódio entre os sunitas iraquianos e as populações xiita e curda do país, além da consternação presente em boa parte dos mundos árabe e muçulmano.
E isso significa que enfrentamos a possibilidade não apenas de mais violência sectária no Iraque, mas também de uma chance maior de que outros países e grupos comecem a participar do conflito como fornecedores de armas e até mesmo de combatentes.
A ironia da Constituição iraquiana, aprovada com 79% dos votos, é que, embora aparente constituir um passo crítico em direção à democracia, no que tange a limitar o conflito sectário teria sido melhor se o documento não tivesse sido aprovado.
Nesse caso, os sunitas -muitos dos quais acreditam que a Constituição vai contra seus interesses e votaram contra o texto- passariam a acreditar mais no processo. Já os xiitas e os curdos poderiam se mostrar mais abertos à conciliação em uma nova rodada de negociações após as eleições para a Assembléia Nacional, em dezembro.

Suspeita de irregularidades
Em lugar disso, a desconfiança de que houve irregularidades é ampla entre os sunitas. Os relatos iniciais sobre um percentual de aprovação de 99% em algumas províncias lembraram as vitórias habituais com 99% dos votos que marcavam os regimes ditatoriais da região, justamente algo que os EUA esperavam desacreditar através do exemplo do Iraque.
E uma declaração feita pela secretária de Estado americana, Condoleezza Rice, de que a Constituição "provavelmente foi aprovada", antes mesmo de contados os votos, reforçou o ceticismo já presente.
Mesmo que a eleição fosse considerada justa, o fato de os resultados indicarem um desequilíbrio tão grande -com xiitas e curdos, em sua maioria, votando a favor, enquanto a maioria dos sunitas votava contra- certamente acirraria as divisões.
Alguns sunitas, mesmo os céticos, podem se deixar atrair para o processo político pela oportunidade de conseguir efetuar modificações na Constituição se conseguirem eleger deputados suficientes para a Assembléia Nacional, que vai negociar as emendas como parte de um acordo fechado antes do referendo. Mas, ainda assim, os sunitas, que são 20% dos iraquianos, continuarão a ser minoria na Assembléia, e nada garante que conseguirão termos mais favoráveis do que os da Constituição atual.


O referendo sobre a Carta e o julgamento de Saddam Hussein agravam o ódio entre sunitas, xiitas e curdos

Provavelmente não vai ajudar a reduzir as tensões sectárias -nem no Iraque nem em outras partes do Oriente Médio- o fato de o julgamento de Saddam ter começado no momento em que os votos estavam sendo contados.
Odiado por muitos que foram suas vítimas -grupo esse que inclui os xiitas e curdos do Iraque e também muitos kuaitianos-, Saddam é admirado por muitos dentro e fora do Iraque. (Na sondagem da opinião pública dos países árabes que fiz em 2004, muitas pessoas na Jordânia, um dos aliados mais estreitos dos EUA na região, identificaram Saddam como "o líder mundial mais admirado" fora de seu próprio país.)

Métodos
Ainda mais importante é o fato de que, mesmo entre o grande número de pessoas no mundo árabe e muçulmano e entre os árabes sunitas iraquianos que não admiram o ex-presidente do Iraque, muitos questionam o método pelo qual um governante árabe foi afastado do poder, além da legitimidade das instituições que o julgam.
Grupos internacionais de direitos humanos tinham proposto que Saddam fosse submetido a um tribunal internacional e haviam desaconselhado seu julgamento numa "corte dos vitoriosos". Esses grupos, entre os quais está o Human Rights Watch, temem que as exigências para sua condenação sejam muito menos rígidas do que os padrões internacionais aceitáveis.
Enquanto isso, grupos árabes vêm expressando dúvidas quanto à eqüidade de um julgamento que acontece à sombra das forças americanas. É verdade que, após o primeiro dia do julgamento, o tribunal concordou em adiar o procedimento por um mês, atendendo ao pedido da defesa. Mas isso não vai resolver os outros problemas de probidade e eqüidade do julgamento.
Em última instância, é pouco provável que o julgamento leve muita gente a mudar sua posição anterior, e, quando for retomado, em 28 de novembro, o mais provável é que ele continue a alimentar o ódio sectário.

As necessidades das facções iraquianas abririam oportunidades de intervenção para os vizinhos

Até que ponto a violência sectária no Iraque ainda pode se agravar? O pior cenário possível seria uma guerra civil aberta levando à fragmentação do país em três Estados correspondentes aos três grupos dominantes na população. Mas, para o futuro previsível, esse perigo é limitado.
Para começar, em muitas partes do Iraque as populações se misturam e há casamentos entre pessoas de grupos distintos, especialmente entre árabes sunitas e xiitas -embora esse fator, por si, não constitua barreira suficiente à divisão do país. Outro fator a ser levado em conta é que cada um dos grupos teria muito a perder com a independência no curto prazo.
Os sunitas certamente seriam os que teriam mais a perder, especialmente porque os ricos campos petrolíferos do Iraque se localizam principalmente nas áreas xiitas do sul e nas regiões de maioria curda, no norte. Tendo dominado a política iraquiana por tanto tempo, os árabes sunitas teriam muita dificuldade em aceitar a idéia de se verem com um Estado menor e privado de recursos.
Os xiitas perderiam os benefícios de um Iraque unificado, no qual, como facção majoritária, finalmente teriam voz dominante. Ademais, a fragmentação do Iraque poderia empurrá-los estrategicamente para mais perto do Irã, o que não seria um resultado desejável para a maioria. É fato que os xiitas iraquianos têm uma afinidade religiosa com o Irã. Mas eles são árabes e iraquianos e pesa a força da rivalidade secular com os persas, além da rivalidade iraniano-iraquiana que levou os dois países a travarem uma guerra sangrenta nos anos 1980.
Mesmo os curdos, que claramente se enxergam como um povo independente que merece Estado próprio, vêm pedindo a autonomia gradativa, em grande medida para abrandar a oposição forte à independência curda, especialmente na Turquia e no Irã, que temem movimentos de secessão entre suas próprias populações curdas. Entretanto, mesmo que seja evitada uma guerra civil declarada, qualquer escalada da violência sectária poderia ter conseqüências muito graves no Iraque e em toda a região.
A intensificação do conflito teria duas conseqüências imediatas. A primeira seria o aumento da capacidade da insurgência sunita de recrutar mais apoio no mundo árabe e muçulmano, onde os sunitas constituem maioria. Isso poderia funcionar como grito de guerra que ajudaria grupos como a Al Qaeda no Iraque, de Abu Musab al Zarqawi, a aumentar imensamente o número de combatentes estrangeiros no Iraque.
Zarqawi vem alvejando xiitas na esperança de criar uma reação contrária aos sunitas. Até agora, porém, estima-se que os estrangeiros constituam no máximo cerca de 10% dos insurgentes.

Outros países
A segunda conseqüência seria o provável envolvimento de outros governos da região no conflito no Iraque. Se os sunitas começassem a perder, seria difícil para muitos países árabes e muçulmanos assistir a isso sem intervir.
E as necessidades das facções iraquianas em termos de aliados e suprimentos abririam novas oportunidades de intervenção para os Estados vizinhos interessados. Entre eles está o Irã, que já foi acusado pelo Reino Unido e os EUA de intervir e que poderia enxergar o Iraque como bom palco para dar vazão a sua ira com a exigência européia e americana de que modifique suas atividades nucleares.
Isso ainda inclui a Síria, a quem os EUA acusam de permitir a passagem de insurgentes de seu território para o iraquiano e que também está cada vez mais em atrito com os EUA e outros países devido a um relatório recente da ONU que implicou líderes do país no assassinato do premiê libanês Rafik al Hariri.
Essas ameaças -de um Iraque mais violento e de um Oriente Médio desestabilizado- são as razões pelas quais a maioria dos atores internacionais, incluindo os EUA, vem se esforçando tanto para tentar conservar o Iraque unido e manter o diálogo entre suas facções. Mas a pressa em aprovar uma Constituição que mais divide do que une e um julgamento polêmico que certamente fará manchetes de hora em hora na imprensa árabe podem acabar por surtir o efeito oposto.

Shibley Telhami ocupa a cadeira Anwar Sadat de Paz e Desenvolvimento na Universidade de Maryland, é membro sênior do Centro Saban do Instituto Brookings e integra o conselho-diretor da Human Rights Watch. Este artigo foi escrito originalmente para o "San Jose Mercury".

Tradução de Clara Allain


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