São Paulo, sábado, 19 de novembro de 2005 |
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IRAQUE SOB TUTELA Pressa dos EUA em julgar Saddam Hussein e aprovar nova Carta pode aprofundar divisões entre facções Estabilização afoita pode rachar Iraque
SHIBLEY TELHAMI
Provavelmente não vai ajudar a reduzir as tensões sectárias -nem no Iraque nem em outras partes do Oriente Médio- o fato de o julgamento de Saddam ter começado no momento em que os votos estavam sendo contados. Odiado por muitos que foram suas vítimas -grupo esse que inclui os xiitas e curdos do Iraque e também muitos kuaitianos-, Saddam é admirado por muitos dentro e fora do Iraque. (Na sondagem da opinião pública dos países árabes que fiz em 2004, muitas pessoas na Jordânia, um dos aliados mais estreitos dos EUA na região, identificaram Saddam como "o líder mundial mais admirado" fora de seu próprio país.) Métodos Ainda mais importante é o fato de que, mesmo entre o grande número de pessoas no mundo árabe e muçulmano e entre os árabes sunitas iraquianos que não admiram o ex-presidente do Iraque, muitos questionam o método pelo qual um governante árabe foi afastado do poder, além da legitimidade das instituições que o julgam. Grupos internacionais de direitos humanos tinham proposto que Saddam fosse submetido a um tribunal internacional e haviam desaconselhado seu julgamento numa "corte dos vitoriosos". Esses grupos, entre os quais está o Human Rights Watch, temem que as exigências para sua condenação sejam muito menos rígidas do que os padrões internacionais aceitáveis. Enquanto isso, grupos árabes vêm expressando dúvidas quanto à eqüidade de um julgamento que acontece à sombra das forças americanas. É verdade que, após o primeiro dia do julgamento, o tribunal concordou em adiar o procedimento por um mês, atendendo ao pedido da defesa. Mas isso não vai resolver os outros problemas de probidade e eqüidade do julgamento. Em última instância, é pouco provável que o julgamento leve muita gente a mudar sua posição anterior, e, quando for retomado, em 28 de novembro, o mais provável é que ele continue a alimentar o ódio sectário.
Até que ponto a violência sectária no Iraque ainda pode se agravar? O pior cenário possível seria uma guerra civil aberta levando à fragmentação do país em três Estados correspondentes aos três grupos dominantes na população. Mas, para o futuro previsível, esse perigo é limitado. Para começar, em muitas partes do Iraque as populações se misturam e há casamentos entre pessoas de grupos distintos, especialmente entre árabes sunitas e xiitas -embora esse fator, por si, não constitua barreira suficiente à divisão do país. Outro fator a ser levado em conta é que cada um dos grupos teria muito a perder com a independência no curto prazo. Os sunitas certamente seriam os que teriam mais a perder, especialmente porque os ricos campos petrolíferos do Iraque se localizam principalmente nas áreas xiitas do sul e nas regiões de maioria curda, no norte. Tendo dominado a política iraquiana por tanto tempo, os árabes sunitas teriam muita dificuldade em aceitar a idéia de se verem com um Estado menor e privado de recursos. Os xiitas perderiam os benefícios de um Iraque unificado, no qual, como facção majoritária, finalmente teriam voz dominante. Ademais, a fragmentação do Iraque poderia empurrá-los estrategicamente para mais perto do Irã, o que não seria um resultado desejável para a maioria. É fato que os xiitas iraquianos têm uma afinidade religiosa com o Irã. Mas eles são árabes e iraquianos e pesa a força da rivalidade secular com os persas, além da rivalidade iraniano-iraquiana que levou os dois países a travarem uma guerra sangrenta nos anos 1980. Mesmo os curdos, que claramente se enxergam como um povo independente que merece Estado próprio, vêm pedindo a autonomia gradativa, em grande medida para abrandar a oposição forte à independência curda, especialmente na Turquia e no Irã, que temem movimentos de secessão entre suas próprias populações curdas. Entretanto, mesmo que seja evitada uma guerra civil declarada, qualquer escalada da violência sectária poderia ter conseqüências muito graves no Iraque e em toda a região. A intensificação do conflito teria duas conseqüências imediatas. A primeira seria o aumento da capacidade da insurgência sunita de recrutar mais apoio no mundo árabe e muçulmano, onde os sunitas constituem maioria. Isso poderia funcionar como grito de guerra que ajudaria grupos como a Al Qaeda no Iraque, de Abu Musab al Zarqawi, a aumentar imensamente o número de combatentes estrangeiros no Iraque. Zarqawi vem alvejando xiitas na esperança de criar uma reação contrária aos sunitas. Até agora, porém, estima-se que os estrangeiros constituam no máximo cerca de 10% dos insurgentes. Outros países A segunda conseqüência seria o provável envolvimento de outros governos da região no conflito no Iraque. Se os sunitas começassem a perder, seria difícil para muitos países árabes e muçulmanos assistir a isso sem intervir. E as necessidades das facções iraquianas em termos de aliados e suprimentos abririam novas oportunidades de intervenção para os Estados vizinhos interessados. Entre eles está o Irã, que já foi acusado pelo Reino Unido e os EUA de intervir e que poderia enxergar o Iraque como bom palco para dar vazão a sua ira com a exigência européia e americana de que modifique suas atividades nucleares. Isso ainda inclui a Síria, a quem os EUA acusam de permitir a passagem de insurgentes de seu território para o iraquiano e que também está cada vez mais em atrito com os EUA e outros países devido a um relatório recente da ONU que implicou líderes do país no assassinato do premiê libanês Rafik al Hariri. Essas ameaças -de um Iraque mais violento e de um Oriente Médio desestabilizado- são as razões pelas quais a maioria dos atores internacionais, incluindo os EUA, vem se esforçando tanto para tentar conservar o Iraque unido e manter o diálogo entre suas facções. Mas a pressa em aprovar uma Constituição que mais divide do que une e um julgamento polêmico que certamente fará manchetes de hora em hora na imprensa árabe podem acabar por surtir o efeito oposto. Shibley Telhami ocupa a cadeira Anwar Sadat de Paz e Desenvolvimento na Universidade de Maryland, é membro sênior do Centro Saban do Instituto Brookings e integra o conselho-diretor da Human Rights Watch. Este artigo foi escrito originalmente para o "San Jose Mercury". Tradução de Clara Allain Texto Anterior: Disputa acadêmica: China quer ser país de muitas Harvards Próximo Texto: Mídia: Televisão árabe "expurga" Simpsons em nova versão Índice |
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