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ERA BUSH
Lançamento de cinebiografia de sexólogo vira símbolo da guinada conservadora americana após o 11 de Setembro
50 anos após Kinsey, sexo volta a chocar EUA
SÉRGIO DÁVILA
DA CALIFÓRNIA
1954. Com o sucesso dos dois livros de Alfred Kinsey (1894-1956), "Sexual Behavior in the
Human Male" e "Sexual Behavior
in the Human Female", em que o
sexólogo, considerado o pioneiro nos EUA, escrevia com todas as letras pela primeira vez que
62% das mulheres norte-americanas se masturbavam e que a
maioria dos homens norte-americanos já havia feito sexo com
uma prostituta, o congressista B.
Carrol Reece, do Tennessee, cria
um comitê "para investigar quem
está bancando o instituto que lançou tal pesquisa".
No meio da polêmica, o pesquisador é acusado de trabalhar para
o comunismo na missão de acabar com o núcleo familiar ocidental, e a Fundação Rockefeller, entre outras, retira seu apoio financeiro à Universidade de Indiana,
que abriga o instituto.
2004. Há duas semanas, dezenas
de manifestantes da ONG conservadora Generation Life carregam
cartazes na porta do shopping
center de Century City, em Los
Angeles, pedindo que o público
boicote a cinebiografia "Kinsey",
em exibição em uma das salas de
cinema do centro comercial.
"Não apoie um pedófilo", diz um
dos cartazes. E outro: "Boicote o
homem que degradou os valores
morais da América".
"Alfred Kinsey é um dos responsáveis por minha geração ser
forçada a encarar as conseqüências devastadoras das doenças sexualmente transmissíveis, da pornografia e do aborto", diz a estudante Brandi Swindell, 24, que lidera o protesto.
Uma emissora de TV pública de
Nova York recusou propagandas
sobre o filme, sob a justificativa de
que os spots são "muito comerciais e muito provocativos". Foi
seguida por diversas emissoras
afiliadas à rede ABC.
Já a revista especializada "Variety" recusou um anúncio de página inteira da pesquisadora independente Judith Reisman em que
a escritora conservadora chamava Kinsey de "um homem que
produziu e dirigiu o estupro e a
tortura de centenas de jovens e
crianças".
Cinqüenta anos depois, a cinebiografia do homem que comprovou via pesquisas o que muita
gente intuía mas não tinha coragem de falar virou símbolo da guinada conservadora que os EUA
experimentam desde que o ataque terrorista de 11 de Setembro
de 2001 deu carta branca ao governo de George W. Bush para
implantar sua agenda conservadora, crédito renovado nas últimas eleições, em que 22% dos
eleitores disseram levar em conta
"valores morais" na hora de votar
-e, destes, 88% declararam ter
votado em Bush.
"Acho que T.C. Boyle, um dos
principais biógrafos de Alfred
Kinsey, resume bem o atual estado de espírito do país em uma frase", disse em entrevista à Folha
Bill Condon, diretor da cinebiografia, atualmente em cartaz nos
EUA e com estréia prevista no
Brasil para 4 de março. "Temos a
cultura mais licenciosa desde o
Império Romano e ao mesmo
tempo somos a nação mais puritana jamais inventada."
Em sua turnê de lançamento do
filme, sempre acompanhada por
palestras, o cineasta tem presenciado in loco esta divisão do país,
a mais forte desde que a Guerra
do Vietnã, a luta pelas liberdades
civis e a revolução dos costumes
moldaram os anos 60.
De um lado, estão os chamados
"red states", Estados cuja maioria
dos votos nas últimas eleições foi
de republicanos (vermelha é a cor
do partido conservador), concentrados no que se convencionou
chamar a América Profunda, longe das costas e principalmente no
Meio-Oeste e no sul do país. Sua
ponta-de-lança é a direita religiosa, principalmente evangélicos e
fundamentalistas cristãos. Do outro, os "blue states", de maioria
democrata, liderados pela Califórnia e por Nova York.
"Em Washington, uma mulher
na platéia me acusou de monstro
por eu ter trazido para as telas a
biografia de outro monstro", disse Condon. "A mesma platéia me
aplaudiu."
Nesta guerra, os "vermelhos"
parecem estar ganhando. Em
quatro anos de governo, Bush
passou de US$ 100 milhões para
US$ 180 milhões a verba destinada a programas que pregam a
abstinência sexual entre adolescentes como a única maneira de
se evitar doenças sexualmente
transmissíveis e gravidez indesejada. Segundo concluiu recentemente uma comissão do Congresso norte-americano, 80%
desses programas divulgam informações incorretas ou reforçam
preconceitos entre os jovens.
Na mesma eleição que deixou o
republicano por mais quatro anos
na Casa Branca, dos onze Estados
que traziam em sua cédula plebiscito sobre se o casamento entre
pessoas do mesmo sexo deveria
ou não ser legalizado, "não" foi a
escolha em todos eles, uma derrota que mesmo os mais pessimistas
no movimento gay não previam.
"Espero que vocês tenham percebido que, desde o dia 2 de novembro, os direitos dos homossexuais estão oficialmente mortos",
disse o ativista e dramaturgo
Larry Kramner em discurso em
San Francisco. "Daqui para frente, nós vamos ser levados cada vez
mais próximos da guilhotina."
Na semana seguinte, as três
maiores emissoras abertas norte-americanas, ABC, CBS e NBC, se
recusaram a levar ao ar um anúncio da Igreja Unida de Cristo em
que a entidade avisava que a partir daquela data suas 6.000 casas
de oração seriam abertas a casais
de qualquer orientação sexual.
"Muito polêmicos", foi a explicação dada pelas TVs. "A ABC
tem como norma não aceitar
anúncios de organizações religiosas que expressem um ponto de
vista polêmico", disse a assessora
de imprensa Julie Hoover.
Dias depois, no começo de dezembro, as mesmas emissoras recusaram em bloco outro anúncio,
desta vez contra a propagação da
sífilis. A idéia original da ONG era
comprar espaço no intervalo do
seriado "Will & Grace", exibido
na noite das quintas-feiras, e em
outros intervalos semelhantes. A
contraproposta das emissoras foi
jogar o filme publicitário para a
madrugada.
"Nós vamos levar este caso à
FCC (a agência norte-americana
que regula as transmissões de TV
e rádio)", disse Ged Kenslea, da
Aids Healthcare Foundation. "Esse medo do efeito dos tais "valores
morais" está realmente fugindo do
controle."
Mais direto foi o produtor Mark
Burnett, do programa de reality-TV de maior sucesso no ar nos
EUA, "Survivor", ao cortar uma
cena em que uma das participantes, lésbica, abraçava e beijava (no
rosto) sua namorada no ar, ao
reencontrá-la depois de meses de
isolamento.
"Falando francamente, eu seria
um idiota se não percebesse como
o país votou nas últimas eleições",
disse o produtor-executivo sobre
sua decisão à revista "Entertainment Weekly". "Não posso ser
mais honesto que isso, posso?"
O próprio Instituto Kinsey sofre
com a torneira das verbas federais
sendo fechada a cada ano, embora sua diretora, Julia R. Heiman, a
sexta desde o fundador, evite falar
em números. "As pessoas têm
muitas opiniões a dar sobre se a
sexualidade deve ou não ser estudada", disse ela, no cargo desde
junho último. "Sempre tiveram,
sempre terão."
Para ela, ainda hoje, 50 anos depois da fundação do instituto,
"não existe nenhuma outra entidade como esta no país", um dado por si só revelador. "E este lugar tem sua própria história e está
vulnerável por conta dela."
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