São Paulo, domingo, 19 de dezembro de 2004

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ERA BUSH

Lançamento de cinebiografia de sexólogo vira símbolo da guinada conservadora americana após o 11 de Setembro

50 anos após Kinsey, sexo volta a chocar EUA

SÉRGIO DÁVILA
DA CALIFÓRNIA

1954. Com o sucesso dos dois livros de Alfred Kinsey (1894-1956), "Sexual Behavior in the Human Male" e "Sexual Behavior in the Human Female", em que o sexólogo, considerado o pioneiro nos EUA, escrevia com todas as letras pela primeira vez que 62% das mulheres norte-americanas se masturbavam e que a maioria dos homens norte-americanos já havia feito sexo com uma prostituta, o congressista B. Carrol Reece, do Tennessee, cria um comitê "para investigar quem está bancando o instituto que lançou tal pesquisa".
No meio da polêmica, o pesquisador é acusado de trabalhar para o comunismo na missão de acabar com o núcleo familiar ocidental, e a Fundação Rockefeller, entre outras, retira seu apoio financeiro à Universidade de Indiana, que abriga o instituto.
2004. Há duas semanas, dezenas de manifestantes da ONG conservadora Generation Life carregam cartazes na porta do shopping center de Century City, em Los Angeles, pedindo que o público boicote a cinebiografia "Kinsey", em exibição em uma das salas de cinema do centro comercial. "Não apoie um pedófilo", diz um dos cartazes. E outro: "Boicote o homem que degradou os valores morais da América".
"Alfred Kinsey é um dos responsáveis por minha geração ser forçada a encarar as conseqüências devastadoras das doenças sexualmente transmissíveis, da pornografia e do aborto", diz a estudante Brandi Swindell, 24, que lidera o protesto.
Uma emissora de TV pública de Nova York recusou propagandas sobre o filme, sob a justificativa de que os spots são "muito comerciais e muito provocativos". Foi seguida por diversas emissoras afiliadas à rede ABC.
Já a revista especializada "Variety" recusou um anúncio de página inteira da pesquisadora independente Judith Reisman em que a escritora conservadora chamava Kinsey de "um homem que produziu e dirigiu o estupro e a tortura de centenas de jovens e crianças".
Cinqüenta anos depois, a cinebiografia do homem que comprovou via pesquisas o que muita gente intuía mas não tinha coragem de falar virou símbolo da guinada conservadora que os EUA experimentam desde que o ataque terrorista de 11 de Setembro de 2001 deu carta branca ao governo de George W. Bush para implantar sua agenda conservadora, crédito renovado nas últimas eleições, em que 22% dos eleitores disseram levar em conta "valores morais" na hora de votar -e, destes, 88% declararam ter votado em Bush.
"Acho que T.C. Boyle, um dos principais biógrafos de Alfred Kinsey, resume bem o atual estado de espírito do país em uma frase", disse em entrevista à Folha Bill Condon, diretor da cinebiografia, atualmente em cartaz nos EUA e com estréia prevista no Brasil para 4 de março. "Temos a cultura mais licenciosa desde o Império Romano e ao mesmo tempo somos a nação mais puritana jamais inventada."
Em sua turnê de lançamento do filme, sempre acompanhada por palestras, o cineasta tem presenciado in loco esta divisão do país, a mais forte desde que a Guerra do Vietnã, a luta pelas liberdades civis e a revolução dos costumes moldaram os anos 60.
De um lado, estão os chamados "red states", Estados cuja maioria dos votos nas últimas eleições foi de republicanos (vermelha é a cor do partido conservador), concentrados no que se convencionou chamar a América Profunda, longe das costas e principalmente no Meio-Oeste e no sul do país. Sua ponta-de-lança é a direita religiosa, principalmente evangélicos e fundamentalistas cristãos. Do outro, os "blue states", de maioria democrata, liderados pela Califórnia e por Nova York.
"Em Washington, uma mulher na platéia me acusou de monstro por eu ter trazido para as telas a biografia de outro monstro", disse Condon. "A mesma platéia me aplaudiu."
Nesta guerra, os "vermelhos" parecem estar ganhando. Em quatro anos de governo, Bush passou de US$ 100 milhões para US$ 180 milhões a verba destinada a programas que pregam a abstinência sexual entre adolescentes como a única maneira de se evitar doenças sexualmente transmissíveis e gravidez indesejada. Segundo concluiu recentemente uma comissão do Congresso norte-americano, 80% desses programas divulgam informações incorretas ou reforçam preconceitos entre os jovens.
Na mesma eleição que deixou o republicano por mais quatro anos na Casa Branca, dos onze Estados que traziam em sua cédula plebiscito sobre se o casamento entre pessoas do mesmo sexo deveria ou não ser legalizado, "não" foi a escolha em todos eles, uma derrota que mesmo os mais pessimistas no movimento gay não previam.
"Espero que vocês tenham percebido que, desde o dia 2 de novembro, os direitos dos homossexuais estão oficialmente mortos", disse o ativista e dramaturgo Larry Kramner em discurso em San Francisco. "Daqui para frente, nós vamos ser levados cada vez mais próximos da guilhotina."
Na semana seguinte, as três maiores emissoras abertas norte-americanas, ABC, CBS e NBC, se recusaram a levar ao ar um anúncio da Igreja Unida de Cristo em que a entidade avisava que a partir daquela data suas 6.000 casas de oração seriam abertas a casais de qualquer orientação sexual.
"Muito polêmicos", foi a explicação dada pelas TVs. "A ABC tem como norma não aceitar anúncios de organizações religiosas que expressem um ponto de vista polêmico", disse a assessora de imprensa Julie Hoover.
Dias depois, no começo de dezembro, as mesmas emissoras recusaram em bloco outro anúncio, desta vez contra a propagação da sífilis. A idéia original da ONG era comprar espaço no intervalo do seriado "Will & Grace", exibido na noite das quintas-feiras, e em outros intervalos semelhantes. A contraproposta das emissoras foi jogar o filme publicitário para a madrugada.
"Nós vamos levar este caso à FCC (a agência norte-americana que regula as transmissões de TV e rádio)", disse Ged Kenslea, da Aids Healthcare Foundation. "Esse medo do efeito dos tais "valores morais" está realmente fugindo do controle."
Mais direto foi o produtor Mark Burnett, do programa de reality-TV de maior sucesso no ar nos EUA, "Survivor", ao cortar uma cena em que uma das participantes, lésbica, abraçava e beijava (no rosto) sua namorada no ar, ao reencontrá-la depois de meses de isolamento.
"Falando francamente, eu seria um idiota se não percebesse como o país votou nas últimas eleições", disse o produtor-executivo sobre sua decisão à revista "Entertainment Weekly". "Não posso ser mais honesto que isso, posso?"
O próprio Instituto Kinsey sofre com a torneira das verbas federais sendo fechada a cada ano, embora sua diretora, Julia R. Heiman, a sexta desde o fundador, evite falar em números. "As pessoas têm muitas opiniões a dar sobre se a sexualidade deve ou não ser estudada", disse ela, no cargo desde junho último. "Sempre tiveram, sempre terão."
Para ela, ainda hoje, 50 anos depois da fundação do instituto, "não existe nenhuma outra entidade como esta no país", um dado por si só revelador. "E este lugar tem sua própria história e está vulnerável por conta dela."


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