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ARTIGO
Crise revela limites da democracia boliviana
LUIZ ALBERTO MONIZ BANDEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Em depoimento no Senado dos
EUA, em março de 2000, o general Charles Wilhelm, comandante-em-chefe do Southcom (Comando Sul), reconheceu que no
Equador, como em outras nações
na sua área de responsabilidade, a
América do Sul, "a democracia e
as reformas de livre mercado não
estavam propiciando tangíveis resultados para o povo". Ele disse
que muitas nações estavam pior
economicamente do que antes da
restauração da democracia e perguntou: "Pode a democracia sobreviver sem o sistema econômico que produza adequada subsistência e serviços para seus cidadãos?".
O fim das ditaduras militares e a
liberalização da economia não
trouxeram resultados tangíveis
nem para o Equador nem para a
Bolívia, onde, em 1952, ocorrera
uma revolução que nacionalizou
as minas de estanho, promoveu a
reforma agrária, extinguindo as
relações de servidão e incorporando os índios à sociedade, e
desmantelou o Exército, substituído por milícias operárias e
camponesas, sob o comando da
Central Operária Boliviana.
As forças de esquerda, no entanto, não tiveram condições de
avançar, e os EUA, sob a Presidência de Dwight Eisenhower,
optaram por uma estratégia de
conciliação, o que permitiu ao
presidente Víctor Paz Estensoro
reconstruir o Exército, cujos oficiais passaram a receber formação avançada em base militar no
Colégio Interamericano de Defesa
(Panamá), absorvendo a doutrina
da ação cívica e a estratégia da
contra-insurreição.
Esses ensinamentos se infiltraram na estrutura de comando do
novo Exército, e o general René
Barrientos, em 1964, desfechou
um golpe militar. A Bolívia entrou
em outro período de turbulência.
O regime democrático só foi
restabelecido em 1982 e, a fim de
controlar a hiperinflação, o presidente Víctor Paz Estensoro, líder
do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), que voltara
ao governo em 1985, impôs um
programa de ajuste estrutural.
Seus sucessores, Jayme Paz Zamora (1989-93), do Movimento
da Esquerda Revolucionária
(MIR), e Gonzalo Sánchez de Lozada (1993-98), do MNR, aplicaram com certo êxito o mesmo
programa neoliberal, dado que a
hiperinflação o tornara aceitável
para a população.
Desde que Argentina, Brasil e
EUA deixaram de encorajar golpes de Estado, o regime democrático se estabilizou no país e, de
1990 a 1998, sua economia cresceu
a uma taxa média de 3,9%, e a inflação caiu de 7.000%, em 1985,
para 3%, em 1999. Porém, na
inauguração do seminário "Estratégia boliviana de redução da pobreza" (EBRP), o próprio presidente Hugo Banzer deplorou que
a estabilidade econômica em 15
anos não houvesse contribuído
para diminuir os índices de pobreza, em que mais da metade da
população (63%), em especial a
de origem indígena, vivia em
2000.
Na área rural, mais de 80% da
população estava reduzida à miséria. A questão agrária tornou-se
outra vez grave fator de tensões
sociais, e os conflitos irromperam. O aumento das tarifas de
água na cidade de Cochabamba,
em conseqüência de contrato
com uma empresa estrangeira,
desencadeou em abril de 2000 um
levante popular, que se estendeu
aos produtores de coca, na região
de Chapare, e a outros camponeses e de trabalhadores em outras
cidades.
A Confederação Sindical Única
dos Trabalhadores Camponeses
da Bolívia iniciou o bloqueio das
estradas e, ante a ameaça de convulsão social, o presidente Hugo
Banzer decretou estado de sítio
por 90 dias. A agitação seguiu por
dias e só diminuiu depois que ele
firmou convênios com os camponeses, intermediados pela Igreja
Católica e por organizações de direitos humanos. Prometeu a reativação da economia e pediu perdão pelos pobres que um sistema
social excludente produzia.
As tensões, porém, voltaram a
agravar-se, quando se anunciou a
construção de três bases militares
na região de Chapare, com o
apoio dos EUA, a pretexto de
combate às drogas. Ocorreram
então manifestações de protesto,
bloqueio das estradas e violentos
choques entre tropas do Exército
e camponeses, que se opunham à
erradicação do cultivo de coca. O
afastamento de Banzer configurou-se como a única saída para
apaziguar o país e, em 6 de agosto
de 2001, ele apresentou sua renúncia ao Congresso.
Gonzalo Sánchez de Lozada,
que governou o país de 1993 a
1997, foi eleito indiretamente pelo
Congresso Nacional, derrotando
Evo Morales, dirigente do Movimento ao Socialismo (MAS), importante líder camponês e acusado pelos EUA de envolvimento
com o narcotráfico por defender
os interesses dos plantadores de
coca, atividade milenar dos indígenas bolivianos.
Sánchez de Lozada promoveu
então uma série de reformas neoliberais e privatizou desde a distribuição de água até a exploração e
exportação de gás e petróleo. Mas
não conseguiu manter-se no governo quando concedeu autorização para que os EUA e a Espanha
(Repsol) exportassem petróleo
-por meio do território perdido
para o Chile, no litoral do Pacífico,
desde a guerra de 1879-84. Ante
maciças manifestações populares
em 2003 e após ordenar violenta
repressão em outubro, que deixou 78 mortos, e razias em bairros
populares, ele teve de renunciar e
exilou-se na Argentina.
O que outra vez detonou crise
na Bolívia foi a discussão da Lei de
Hidrocarbonetos -gás e petróleo- no Congresso, no que se refere à cobrança de royalties e impostos. O presidente Carlos Mesa
apóia proposta segundo a qual as
empresas que exploram o gás boliviano devem pagar ao Estado
18% a título de royalties, e Evo
Morales, entendendo que o percentual deve ser de 50%, desencadeou o movimento de oposição,
com dirigentes sindicais. Carlos
Mesa, diante da agitação, apresentou sua renúncia, rejeitada pelo Congresso.
Os EUA também constituem
parte da crise na Bolívia, onde
mantêm uma embaixada com
cerca de 900 funcionários e enorme quantidade de tropas das Forças de Operação Especiais, que
desde 1999 já treinaram mais de
6.000 militares bolivianos e atuam
principalmente nas regiões cocaleiras de Chapare e Yungas.
Há interesses em encorajar o
sentimento separatista de Santa
Cruz de la Sierra, um vasto território muito rico, geograficamente
localizado na malha hídrica da
América do Sul, que é o sustentáculo econômico da Bolívia. Mas,
segundo políticos bolivianos, a
pressão pela autonomia da região,
recentemente desencadeada, não
corresponde ao tradicional sentimento separatista, que lá sempre
existiu, mas resulta de uma operação montada pelas companhias
de petróleo depois da aprovação
da nova Lei de Hidrocarbonetos
no plebiscito de 2004 e que ainda
deve ser regulamentada.
O cientista político Luiz Alberto Moniz
Bandeira é professor emérito da Universidade de Brasília e autor dos livros "As
Relações Perigosas: Brasil-Estados Unidos de Collor a Lula, 1990-2004", "Brasil,
Argentina e Estados Unidos" e "De Martí
a Fidel: a Revolução Cubana e a América
Latina"
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