São Paulo, domingo, 20 de março de 2005

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ARTIGO

Crise revela limites da democracia boliviana

LUIZ ALBERTO MONIZ BANDEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em depoimento no Senado dos EUA, em março de 2000, o general Charles Wilhelm, comandante-em-chefe do Southcom (Comando Sul), reconheceu que no Equador, como em outras nações na sua área de responsabilidade, a América do Sul, "a democracia e as reformas de livre mercado não estavam propiciando tangíveis resultados para o povo". Ele disse que muitas nações estavam pior economicamente do que antes da restauração da democracia e perguntou: "Pode a democracia sobreviver sem o sistema econômico que produza adequada subsistência e serviços para seus cidadãos?".
O fim das ditaduras militares e a liberalização da economia não trouxeram resultados tangíveis nem para o Equador nem para a Bolívia, onde, em 1952, ocorrera uma revolução que nacionalizou as minas de estanho, promoveu a reforma agrária, extinguindo as relações de servidão e incorporando os índios à sociedade, e desmantelou o Exército, substituído por milícias operárias e camponesas, sob o comando da Central Operária Boliviana.
As forças de esquerda, no entanto, não tiveram condições de avançar, e os EUA, sob a Presidência de Dwight Eisenhower, optaram por uma estratégia de conciliação, o que permitiu ao presidente Víctor Paz Estensoro reconstruir o Exército, cujos oficiais passaram a receber formação avançada em base militar no Colégio Interamericano de Defesa (Panamá), absorvendo a doutrina da ação cívica e a estratégia da contra-insurreição.
Esses ensinamentos se infiltraram na estrutura de comando do novo Exército, e o general René Barrientos, em 1964, desfechou um golpe militar. A Bolívia entrou em outro período de turbulência.
O regime democrático só foi restabelecido em 1982 e, a fim de controlar a hiperinflação, o presidente Víctor Paz Estensoro, líder do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), que voltara ao governo em 1985, impôs um programa de ajuste estrutural. Seus sucessores, Jayme Paz Zamora (1989-93), do Movimento da Esquerda Revolucionária (MIR), e Gonzalo Sánchez de Lozada (1993-98), do MNR, aplicaram com certo êxito o mesmo programa neoliberal, dado que a hiperinflação o tornara aceitável para a população.
Desde que Argentina, Brasil e EUA deixaram de encorajar golpes de Estado, o regime democrático se estabilizou no país e, de 1990 a 1998, sua economia cresceu a uma taxa média de 3,9%, e a inflação caiu de 7.000%, em 1985, para 3%, em 1999. Porém, na inauguração do seminário "Estratégia boliviana de redução da pobreza" (EBRP), o próprio presidente Hugo Banzer deplorou que a estabilidade econômica em 15 anos não houvesse contribuído para diminuir os índices de pobreza, em que mais da metade da população (63%), em especial a de origem indígena, vivia em 2000.
Na área rural, mais de 80% da população estava reduzida à miséria. A questão agrária tornou-se outra vez grave fator de tensões sociais, e os conflitos irromperam. O aumento das tarifas de água na cidade de Cochabamba, em conseqüência de contrato com uma empresa estrangeira, desencadeou em abril de 2000 um levante popular, que se estendeu aos produtores de coca, na região de Chapare, e a outros camponeses e de trabalhadores em outras cidades.
A Confederação Sindical Única dos Trabalhadores Camponeses da Bolívia iniciou o bloqueio das estradas e, ante a ameaça de convulsão social, o presidente Hugo Banzer decretou estado de sítio por 90 dias. A agitação seguiu por dias e só diminuiu depois que ele firmou convênios com os camponeses, intermediados pela Igreja Católica e por organizações de direitos humanos. Prometeu a reativação da economia e pediu perdão pelos pobres que um sistema social excludente produzia.
As tensões, porém, voltaram a agravar-se, quando se anunciou a construção de três bases militares na região de Chapare, com o apoio dos EUA, a pretexto de combate às drogas. Ocorreram então manifestações de protesto, bloqueio das estradas e violentos choques entre tropas do Exército e camponeses, que se opunham à erradicação do cultivo de coca. O afastamento de Banzer configurou-se como a única saída para apaziguar o país e, em 6 de agosto de 2001, ele apresentou sua renúncia ao Congresso.
Gonzalo Sánchez de Lozada, que governou o país de 1993 a 1997, foi eleito indiretamente pelo Congresso Nacional, derrotando Evo Morales, dirigente do Movimento ao Socialismo (MAS), importante líder camponês e acusado pelos EUA de envolvimento com o narcotráfico por defender os interesses dos plantadores de coca, atividade milenar dos indígenas bolivianos.
Sánchez de Lozada promoveu então uma série de reformas neoliberais e privatizou desde a distribuição de água até a exploração e exportação de gás e petróleo. Mas não conseguiu manter-se no governo quando concedeu autorização para que os EUA e a Espanha (Repsol) exportassem petróleo -por meio do território perdido para o Chile, no litoral do Pacífico, desde a guerra de 1879-84. Ante maciças manifestações populares em 2003 e após ordenar violenta repressão em outubro, que deixou 78 mortos, e razias em bairros populares, ele teve de renunciar e exilou-se na Argentina.
O que outra vez detonou crise na Bolívia foi a discussão da Lei de Hidrocarbonetos -gás e petróleo- no Congresso, no que se refere à cobrança de royalties e impostos. O presidente Carlos Mesa apóia proposta segundo a qual as empresas que exploram o gás boliviano devem pagar ao Estado 18% a título de royalties, e Evo Morales, entendendo que o percentual deve ser de 50%, desencadeou o movimento de oposição, com dirigentes sindicais. Carlos Mesa, diante da agitação, apresentou sua renúncia, rejeitada pelo Congresso.
Os EUA também constituem parte da crise na Bolívia, onde mantêm uma embaixada com cerca de 900 funcionários e enorme quantidade de tropas das Forças de Operação Especiais, que desde 1999 já treinaram mais de 6.000 militares bolivianos e atuam principalmente nas regiões cocaleiras de Chapare e Yungas.
Há interesses em encorajar o sentimento separatista de Santa Cruz de la Sierra, um vasto território muito rico, geograficamente localizado na malha hídrica da América do Sul, que é o sustentáculo econômico da Bolívia. Mas, segundo políticos bolivianos, a pressão pela autonomia da região, recentemente desencadeada, não corresponde ao tradicional sentimento separatista, que lá sempre existiu, mas resulta de uma operação montada pelas companhias de petróleo depois da aprovação da nova Lei de Hidrocarbonetos no plebiscito de 2004 e que ainda deve ser regulamentada.


O cientista político Luiz Alberto Moniz Bandeira é professor emérito da Universidade de Brasília e autor dos livros "As Relações Perigosas: Brasil-Estados Unidos de Collor a Lula, 1990-2004", "Brasil, Argentina e Estados Unidos" e "De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina"


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