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EUA montam milícia sunita a US$ 10 o dia
Valor é pago para que iraquianos cuidem da segurança em seus bairros; em um ano, contingente passou de 1.500 a 80 mil
Fenômeno, conhecido como "despertar", levou à redução de 90% dos ataques contra americanos na Província em que nasceu o movimento
PATRICE CLAUDE
DO "MONDE", EM BAGDÁ
Ele é um jovem oficial de
olhos claros que está terminando seu terceiro período de serviço no Iraque. Diante do francês que lhe pede entrevista no
saguão do Al Rachid, o último
"palácio" em estado mais ou
menos funcional no coração da
célebre Zona Verde ultrafortificada de Bagdá, Dexter F. hesita. "Lamento, não tenho autorização para falar com você."
Há um ano, mais ou menos,
as autoridades iraquianas vêm
proibindo seus policiais, soldados e até mesmo médicos de falarem com a imprensa. Felizmente, nem todos obedecem.
Pára-quedista da 82ª unidade
aerotransportada, o soldado
americano acaba se sentando
na banqueta de couro preto.
"Francamente", revela ao
responder à primeira pergunta,
"ainda bem que vamos embora". "Não agüento mais. Veja só
-agora nos obrigam a tomar
chazinho com os mesmos tipos
que atiravam em nós, não faz
nem seis meses. E que ainda
atiram em nós depois da noite
cair, talvez -a gente não sabe.
É asqueroso."
Hoje, em toda Bagdá, não se
fala em outra coisa senão nesses "tipos", os "sahwas", os "filhos do Iraque", ou, ainda, os
"cidadãos locais que se preocupam", como os batizou a embaixada americana.
Há um ano, mais ou menos,
eles vêm sendo recrutados, por
cerca de US$ 10 por dia, para
ajudar a estabelecer a "pax
americana" em seus bairros,
suas cidades ou suas tribos. Pagam salários aos "terroristas"
para que mudem de lado, tornem-se os olhos e os ouvidos do
Exército americano.
A idéia -que, como diz o general David Petraeus, comandante-em-chefe do corpo expedicionário, "contribuiu em
muito" para a redução em 60%
a 70% dos ataques e atentados
nos últimos oito meses- era
tão simples que alguns se perguntam por que foram precisos
quase 4.000 soldados mortos,
29 mil feridos e pelo menos 150
mil vítimas iraquianas para que
se chegasse a ela.
Foi um pequeno clã tribal da
imensa Província sunita de Al
Anbar que primeiro procurou
os comandantes americanos. O
pai e três dos irmãos do xeque
Abdul Sattar Abu Richa tinham
sido degolados por seguidores
da Al Qaeda no Iraque.
Milhares de civis iraquianos
foram massacrados em centenas de atentados indiscriminados. Foi devido a essas matanças que começou o fenômeno
do "despertar" ("sahwa", em
árabe). Dezenas de xeques tribais imitaram o exemplo de
Abu Richa, oferecendo seus
serviços aos EUA.
A razão da demora do alto comando americano em fazer a
aposta tática foi explicada por
um tenente-coronel da infantaria, que não quis se identificar:
"Cegamo-nos, acreditamos em
nossa própria propaganda, que
retratava todos os que nos atacavam como baathistas convictos ou fanáticos islâmicos a serviço da Al Qaeda".
Em fevereiro, na véspera de
sua saída do Iraque, o general
Raymond Odierno, número
dois do corpo expedicionário,
afirmara à revista "Newsweek"
que se deu conta tardiamente
de que muitas das pessoas que
os combatiam não eram realmente insurgentes. "Elas não
eram realmente ideologicamente contrárias ao progresso.
Apenas tentavam sobreviver."
De 1.500 a 80 mil
Em janeiro de 2007, os "cidadãos locais que se preocupam"
eram menos de 1.500, quando o
presidente George W. Bush decidiu enviar 30 mil soldados para reforçar o corpo expedicionário americano, então estimado em 135 mil homens.
Hoje, os combatentes locais
adicionais são cerca de 80 mil,
82% deles sunitas. O general
Petraeus resumiu sua motivação na "Time" de 11 de fevereiro: "Não é possível matar uma
insurreição inteira. Não se pode derrotar todo o mundo. É
preciso chamar essas pessoas
para a nossa causa."
Alaa Abu Ahmed, 30, é mecânico por profissão e membro
assalariado da milícia criada no
ano passado no distrito de Al
Dora. Ele admite ter participado da limpeza étnica dos xiitas
que antes viviam em seu bairro.
Em abril de 2007, diz Abu
Ahmed, "nosso xeque nos reuniu na mesquita". "Ele disse
que a população de Al Dora já
estava farta dos combates e das
incursões dos xiitas. Disse que
um oficial infiel tinha proposto
suspender os combates, construir muros antibombas em
volta de nossos bairros e deixar
que nós mesmos protegêssemos nossas ruas e nossas casas.
Tinham proposto nos organizar, nos fornecer armas e veículos. E até mesmo pagar um salário de 14 mil dinares por dia
(cerca de US$ 10). Alguns de
nós reagimos dizendo que era
traição. Outros aceitaram."
O chefe do grupo de Ahmed,
um certo Salah Kashgul Saleh,
era coronel nos serviços de segurança interna de Saddam
Hussein. "O que tínhamos a
perder?", ele questiona. "A
maioria de nós aceitou tirar fotos para usar o distintivo que
nos autoriza a andar armados.
Eu não. Quando saio de casa,
pego emprestado o distintivo
de um de meus primos. Prefiro
permanecer anônimo. Um dia,
os americanos irão embora."
Resistência
A maioria xiita que domina o
governo resiste à reviravolta
americana. Já faz um ano que o
general Petraeus vem pedindo
a integração no Exército e na
polícia de ao menos um quarto
de seus auxiliares sunitas, mas
até agora menos de 12 mil estão
em processo de serem aceitos.
De início muito críticos do
fenômeno, o primeiro-ministro Maliki e seu principal aliado
político, Abdel Aziz al Hakim,
líder do maior partido xiita na
Assembléia, moderaram sua
posição e agora, pelo menos em
público, saúdam a "reviravolta
patriótica dos irmãos sunitas".
Mas está fora de cogitação que
eles cedam aos americanos tudo o que pedem para seus "novos amigos". Não haverá quartel-general em Bagdá nem armamentos pesados ou veículos
blindados.
"A má vontade e a corrupção
do governo são evidentes", diz
um dos autoproclamados pais
do fenômeno, o xeque Ali Hatem al Ali Suleiman.
O desenvolvimento dos "sahwas" mostra sua eficácia em
campo. Na Província de Al Anbar, os ataques antiamericanos
diminuíram 90%.
Os "filhos do Iraque" agora
querem exercer papel político.
Um "Partido do Despertar" está em processo de criação. Alguns já reclamam cargos ministeriais para seus membros. A
sorte da maioria xiita, por enquanto, é que o novo Exército
complementar não obedece a
um chefe, mas a cem ou mil. Ele
é desunido, fragmentado, dividido. "Graças a Deus", comentam alguns na Zona Verde, para
se tranqüilizar.
Tradução de CLARA ALLAIN
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