São Paulo, quinta-feira, 20 de março de 2008

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EUA montam milícia sunita a US$ 10 o dia

Valor é pago para que iraquianos cuidem da segurança em seus bairros; em um ano, contingente passou de 1.500 a 80 mil

Fenômeno, conhecido como "despertar", levou à redução de 90% dos ataques contra americanos na Província em que nasceu o movimento

PATRICE CLAUDE
DO "MONDE", EM BAGDÁ

Ele é um jovem oficial de olhos claros que está terminando seu terceiro período de serviço no Iraque. Diante do francês que lhe pede entrevista no saguão do Al Rachid, o último "palácio" em estado mais ou menos funcional no coração da célebre Zona Verde ultrafortificada de Bagdá, Dexter F. hesita. "Lamento, não tenho autorização para falar com você."
Há um ano, mais ou menos, as autoridades iraquianas vêm proibindo seus policiais, soldados e até mesmo médicos de falarem com a imprensa. Felizmente, nem todos obedecem.
Pára-quedista da 82ª unidade aerotransportada, o soldado americano acaba se sentando na banqueta de couro preto. "Francamente", revela ao responder à primeira pergunta, "ainda bem que vamos embora". "Não agüento mais. Veja só -agora nos obrigam a tomar chazinho com os mesmos tipos que atiravam em nós, não faz nem seis meses. E que ainda atiram em nós depois da noite cair, talvez -a gente não sabe. É asqueroso."
Hoje, em toda Bagdá, não se fala em outra coisa senão nesses "tipos", os "sahwas", os "filhos do Iraque", ou, ainda, os "cidadãos locais que se preocupam", como os batizou a embaixada americana. Há um ano, mais ou menos, eles vêm sendo recrutados, por cerca de US$ 10 por dia, para ajudar a estabelecer a "pax americana" em seus bairros, suas cidades ou suas tribos. Pagam salários aos "terroristas" para que mudem de lado, tornem-se os olhos e os ouvidos do Exército americano.
A idéia -que, como diz o general David Petraeus, comandante-em-chefe do corpo expedicionário, "contribuiu em muito" para a redução em 60% a 70% dos ataques e atentados nos últimos oito meses- era tão simples que alguns se perguntam por que foram precisos quase 4.000 soldados mortos, 29 mil feridos e pelo menos 150 mil vítimas iraquianas para que se chegasse a ela.
Foi um pequeno clã tribal da imensa Província sunita de Al Anbar que primeiro procurou os comandantes americanos. O pai e três dos irmãos do xeque Abdul Sattar Abu Richa tinham sido degolados por seguidores da Al Qaeda no Iraque.
Milhares de civis iraquianos foram massacrados em centenas de atentados indiscriminados. Foi devido a essas matanças que começou o fenômeno do "despertar" ("sahwa", em árabe). Dezenas de xeques tribais imitaram o exemplo de Abu Richa, oferecendo seus serviços aos EUA.
A razão da demora do alto comando americano em fazer a aposta tática foi explicada por um tenente-coronel da infantaria, que não quis se identificar: "Cegamo-nos, acreditamos em nossa própria propaganda, que retratava todos os que nos atacavam como baathistas convictos ou fanáticos islâmicos a serviço da Al Qaeda".
Em fevereiro, na véspera de sua saída do Iraque, o general Raymond Odierno, número dois do corpo expedicionário, afirmara à revista "Newsweek" que se deu conta tardiamente de que muitas das pessoas que os combatiam não eram realmente insurgentes. "Elas não eram realmente ideologicamente contrárias ao progresso. Apenas tentavam sobreviver."

De 1.500 a 80 mil
Em janeiro de 2007, os "cidadãos locais que se preocupam" eram menos de 1.500, quando o presidente George W. Bush decidiu enviar 30 mil soldados para reforçar o corpo expedicionário americano, então estimado em 135 mil homens. Hoje, os combatentes locais adicionais são cerca de 80 mil, 82% deles sunitas. O general Petraeus resumiu sua motivação na "Time" de 11 de fevereiro: "Não é possível matar uma insurreição inteira. Não se pode derrotar todo o mundo. É preciso chamar essas pessoas para a nossa causa."
Alaa Abu Ahmed, 30, é mecânico por profissão e membro assalariado da milícia criada no ano passado no distrito de Al Dora. Ele admite ter participado da limpeza étnica dos xiitas que antes viviam em seu bairro.
Em abril de 2007, diz Abu Ahmed, "nosso xeque nos reuniu na mesquita". "Ele disse que a população de Al Dora já estava farta dos combates e das incursões dos xiitas. Disse que um oficial infiel tinha proposto suspender os combates, construir muros antibombas em volta de nossos bairros e deixar que nós mesmos protegêssemos nossas ruas e nossas casas. Tinham proposto nos organizar, nos fornecer armas e veículos. E até mesmo pagar um salário de 14 mil dinares por dia (cerca de US$ 10). Alguns de nós reagimos dizendo que era traição. Outros aceitaram."
O chefe do grupo de Ahmed, um certo Salah Kashgul Saleh, era coronel nos serviços de segurança interna de Saddam Hussein. "O que tínhamos a perder?", ele questiona. "A maioria de nós aceitou tirar fotos para usar o distintivo que nos autoriza a andar armados. Eu não. Quando saio de casa, pego emprestado o distintivo de um de meus primos. Prefiro permanecer anônimo. Um dia, os americanos irão embora."

Resistência
A maioria xiita que domina o governo resiste à reviravolta americana. Já faz um ano que o general Petraeus vem pedindo a integração no Exército e na polícia de ao menos um quarto de seus auxiliares sunitas, mas até agora menos de 12 mil estão em processo de serem aceitos.
De início muito críticos do fenômeno, o primeiro-ministro Maliki e seu principal aliado político, Abdel Aziz al Hakim, líder do maior partido xiita na Assembléia, moderaram sua posição e agora, pelo menos em público, saúdam a "reviravolta patriótica dos irmãos sunitas".
Mas está fora de cogitação que eles cedam aos americanos tudo o que pedem para seus "novos amigos". Não haverá quartel-general em Bagdá nem armamentos pesados ou veículos blindados. "A má vontade e a corrupção do governo são evidentes", diz um dos autoproclamados pais do fenômeno, o xeque Ali Hatem al Ali Suleiman. O desenvolvimento dos "sahwas" mostra sua eficácia em campo. Na Província de Al Anbar, os ataques antiamericanos diminuíram 90%.
Os "filhos do Iraque" agora querem exercer papel político. Um "Partido do Despertar" está em processo de criação. Alguns já reclamam cargos ministeriais para seus membros. A sorte da maioria xiita, por enquanto, é que o novo Exército complementar não obedece a um chefe, mas a cem ou mil. Ele é desunido, fragmentado, dividido. "Graças a Deus", comentam alguns na Zona Verde, para se tranqüilizar.


Tradução de CLARA ALLAIN


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