São Paulo, domingo, 21 de março de 2004

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Fiasco espanhol fere Bush, diz analista

Para o americano Charles Kupchan, queda de Aznar enfraquece coalizão que ocupa o Iraque e favorece bloco franco-alemão


Na percepção européia, a Guerra do Iraque prejudicou a guerra ao terrorismo internacional

Para os líderes do Reino Unido, da Itália e da Polônia, é bom que não haja eleições iminentes



MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

A derrota do Partido Popular, do premiê José María Aznar, na eleição legislativa espanhola, no último domingo, foi bastante significativa, pois representou uma derrota para a administração do presidente dos EUA, George W. Bush, e demonstrou que um de seus aliados europeus teve sua atuação repudiada pela população. Isso significa que a coalizão internacional que apóia a presença americana no Iraque está se tornando mais fraca.
A análise é de Charles Kupchan, diretor de estudos europeus do Council on Foreign Relations -um dos mais reputados "think tanks" americanos-, que foi membro do Conselho de Segurança Nacional dos EUA durante o governo de Bill Clinton (1993-2001) e é autor de, entre vários outros, "The End of the American Era: U.S. Foreign Policy and the Geopolitics of the Twenty-First Century" (o fim da era americana: a política externa dos EUA e a geopolítica do século 21).
Leia a seguir trechos de sua entrevista, por telefone, à Folha.
 

Folha - Que impacto sobre as relações transatlânticas terá a decisão do futuro premiê espanhol, José Luis Rodríguez Zapatero, de retirar suas tropas do Iraque se a ONU não passar a controlar a reconstrução?
Charles Kupchan -
A eleição de Zapatero foi bastante significativa, pois representou uma derrota para a administração de Bush e demonstrou que um de seus aliados na Europa teve sua atuação repudiada pela população. Isso significa que a coalizão que apóia a presença dos EUA no Iraque está se tornando mais frágil.
A segunda mudança importante desencadeada pela eleição espanhola é que deverá haver uma mudança do equilíbrio de poder na União Européia, dando mais força à posição franco-alemã e distanciando o bloco da posição pró-EUA de alguns de seus membros. Isso poderia afetar as relações transatlânticas no que concerne ao Iraque e a uma miríade de questões ligadas a temas europeus e multilaterais.
Por exemplo, a Espanha era a principal aliada da Polônia no que tange a bloquear a reforma do sistema de votação da UE. O futuro governo espanhol já expressou sua intenção de deixar de fazê-lo, o que deverá acelerar a aprovação da Constituição européia.
Há ainda duas outras conseqüências potenciais. Primeiro, o que ocorreu na Espanha reabre a questão do apoio aos EUA em países como o Reino Unido, a Polônia e a Itália. Ainda não temos certeza de que isso vá acontecer, porém a intenção espanhola deverá pôr de volta na agenda política desses países temas que já estavam quase esquecidos.
Segundo, se a Espanha retirar seus soldados do Iraque, essa ação certamente criará problemas para as forças que permanecerão no país e poderá tornar menos provável que a Otan [aliança militar ocidental] aceite desempenhar um papel no Iraque depois da devolução do poder aos iraquianos.

Folha - O sr. crê que alguns países do Leste Europeu possam ter um papel mais importante no Iraque, substituindo os espanhóis?
Kupchan -
É possível. Afinal, são apenas cerca de 1.300 soldados espanhóis. A coisa talvez seja mais complexa no que se refere ao comando de tropas de outros países, mas, ainda assim, não creio que a situação seja complicada demais. Contudo acredito que o impacto da possível ação espanhola seja, em sua essência, mais simbólico do que prático ou militar.

Folha - Trata-se de um duro golpe na guerra ao terror protagonizada por Washington, não é?
Kupchan -
Sua pergunta toca num ponto crucial. A maioria dos europeus distinguem a guerra ao terror da Guerra do Iraque. Na percepção européia, a Guerra do Iraque prejudicou a guerra ao terrorismo internacional. Nos EUA, por outro lado, ambas as guerras são freqüentemente vistas como partes do mesmo esforço. Essa diferença de percepção constitui uma parte da tensão existente hoje entre os aliados transatlânticos.

Folha - Essa situação faz aumentar a pressão sobre o premiê britânico, Tony Blair, e sobre seu colega italiano, Silvio Berlusconi?
Kupchan -
Ainda é cedo para analisar essa questão. Para os líderes políticos do Reino Unido, da Itália e da Polônia, todavia, é bom que não haja eleições iminentes em seus países. Se houvesse eleições em breve, o efeito de contágio da eleição espanhola certamente seria bem expressivo.
É lógico, entretanto, que os líderes políticos desses países passarão a sofrer mais pressão de seus opositores, visto que a oposição de Zapatero à presença espanhola no Iraque e o resultado do pleito legislativo espanhol deram novo alento aos que se opõem à ocupação do Iraque.

Folha - É possível que os EUA decidam conceder mais poder à ONU no Iraque para tentar evitar a retirada das tropas espanholas e outras repercussões negativas para sua atual administração?
Kupchan -
Creio que, por conta da aproximação das eleições americanas, que ocorrerão em novembro, o governo de Bush gostaria de reduzir sua exposição no Iraque, demonstrando que pode compartilhar responsabilidades com seus aliados.
Haverá, nos próximos meses, uma série de manobras diplomáticas cujo objetivo será obter um maior envolvimento da ONU e da comunidade internacional na reconstrução iraquiana. Assim, Bush poderá mostrar aos americanos que suas tropas estão deixando o Iraque e que a responsabilidade pela administração da reconstrução do país está sendo entregue a um órgão e a uma iniciativa internacionais.
Ainda não sabemos como isso ocorrerá. Haverá uma nova resolução da ONU? Penso que isso seja um passo necessário se a administração de Bush quiser contar com a participação da Otan nos esforços relacionados ao Iraque.

Folha - O envolvimento da Otan na reconstrução do Iraque é vital?
Kupchan -
Isso seria bom para a aliança ocidental, que não tem feito muita coisa nos últimos tempos. Se a Otan aceitasse ter um papel no Iraque, os EUA passariam a vê-la como algo mais relevante para seus interesses relacionados à defesa e à segurança. Se não quiser envolver-se na situação, creio que a aliança venha a ter um futuro bem menos promissor.

Folha - A médio e a longo prazos, como os europeus reagirão aos atentados de Madri?
Kupchan -
Haverá alguns paralelos com o que fizeram os EUA no âmbito da segurança interna. Indubitavelmente, os europeus intensificarão o intercâmbio de informações sobre terroristas, a imigração será mais controlada, e existirá uma maior cooperação entre as forças de segurança dos países-membros da UE. Haverá mais vigilância e um maior controle policial em aeroportos e em estações ferroviárias.
Não creio, contudo, que a resposta européia seja similar à americana no que se refere à política externa, às políticas para o Oriente Médio ou à guerra ao terrorismo global. Em parte, isso ocorrerá porque muitas medidas já foram tomadas pelos americanos, e seria difícil imaginar que outro tipo de contribuição para o esforço americano os europeus poderiam fazer.
Obviamente, ademais, inúmeros europeus não acreditam que a Guerra do Iraque seja positiva para o combate à rede Al Qaeda. E vários governos europeus sofrem uma forte pressão popular no sentido de evitar uma resposta cega ou dura demais aos atentados.

Folha - A força militar de reação rápida européia sairá do papel?
Kupchan -
Veremos uma maior vontade política européia de dotar-se de capacidades militares mais confiáveis e de buscar um consenso sobre a defesa coletiva do continente, sobretudo porque o terrorismo atingiu o território europeu e a Espanha deverá adotar uma posição mais pró-Europa. Há uma forte possibilidade de que haja um aprofundamento da integração européia, o que não era possível antes.
Além disso, Blair deverá gradualmente levar o Reino Unido a uma maior aproximação com a Europa, e, na esfera da defesa, isso ficará ainda mais claro. Esse fenômeno já começou, pois ele se encontrou com [Jacques] Chirac [presidente francês] e com [Gerhard] Schröder [chanceler -premiê- alemão] e aprovou a criação de uma célula européia de planejamento militar na Otan.


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