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Depoimentos de nazistas a psiquiatra do Exército americano, em meio ao julgamento de Nuremberg, expõem as entranhas da Alemanha de Hitler e mostram a perturbadora natureza humana dos réus
Nazistas no divã
MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO
Mordam-se, historiadores.
Coube a um psiquiatra o privilégio de ter conversado com o objeto do desejo de dez em dez pesquisadores da Segunda Guerra
Mundial: os líderes nazistas.
Melhor ainda: Leon Goldensohn, o psiquiatra em questão,
entrevistou esses líderes em seu
momento de fraqueza, em 1946,
durante o julgamento de Nuremberg. Isto é: derrotados na guerra
e diante da perspectiva de enfrentarem a pena de morte por enforcamento, as autoridades nazistas
transformadas em réus estavam
fragilizadas o bastante para falarem abertamente sobre suas vidas, seus colegas de governo e as
atrocidades cometidas pelo Terceiro Reich.
O resultado disso foi anotado
em cadernos que estavam em poder da família de Goldensohn e se
tornaram públicos no livro "As
Entrevistas de Nuremberg", lançado na semana passada no Brasil
pela Companhia das Letras.
Goldensohn, que integrava o
Exército americano, não era o
único especialista a trabalhar em
Nuremberg com a função de zelar
pela manutenção da saúde mental
dos réus. Tampouco foi o único a
ter seus registros transformados
em livro. Mas ele era o mais bem-visto pelos réus, e suas anotações
são as mais detalhadas de todas, o
que torna seu trabalho especialmente significativo.
Embora sua preocupação fosse
claramente médica, Goldensohn
produziu um material que preenche um importante vácuo historiográfico. As declarações dos líderes nazistas disponíveis até agora geralmente ou eram registros
de seus discursos quando no poder ou haviam sido tomadas em
depoimentos a tribunais como o
de Nuremberg, sob orientação de
advogados. Os depoimentos que
Goldensohn obteve aproximam-se de confissões, e isso muda tudo.
Disfarces morais
A maioria dos entrevistados repete, quase como um mantra, que
não sabia das atrocidades do regime que integrava, embora participasse do altíssimo escalão -caso
de Hermann Goering, o número
dois de Hitler.
Eles culpam Hitler, Heinrich
Himmler (chefe da SS, tropa de
elite nazista) e Joseph Goebbels
(ministro da Propaganda), todos
mortos quando o tribunal foi estabelecido. É uma mentira óbvia,
contada não só pelos criminosos
notórios, como Goering, mas
também por aqueles que eram
vistos como "bons nazistas", como Albert Speer, o arquiteto e ministro de armamentos de Hitler.
No entanto, diante da inquirição de Goldensohn, freqüentemente aguda, os entrevistados falam muito mais do que estavam
dispostos a admitir no tribunal,
abrindo mão dos disfarces legais e
morais que o momento exigia. A
soma de todos os depoimentos é,
assim, um retrato das entranhas
do nazismo, de sua razão de ser e
de sua trajetória.
Como psiquiatra, Goldensohn
conversa com seus "pacientes"
acerca de obsessões, vida pregressa e relações sociais. Hans Frank,
administrador da Polônia durante a guerra, fala das amantes; Goering comenta sua obsessão por
obras de arte e luxo; Joachim von
Ribbentrop, o chanceler de Hitler,
revela que ainda estava deprimido por causa da morte do pai.
A partir desse perfil, os entrevistados colocam-se não como
monstros, mas como seres humanos, e seus atos inscrevem-se na
história, e não na demonologia.
É exatamente isso que torna o
trabalho de Goldensohn perturbador, conforme diz Robert Gellately, o organizador do livro, na
entrevista abaixo.
Mesmo derrotados, os réus reafirmam com naturalidade suas
disposições mais profundas, como o anti-semitismo, justificam o
nazismo como um esforço legítimo para conter judeus e comunistas e fazem análises catastróficas
sobre o mundo que estava se erguendo sobre os escombros do
Império de Mil Anos.
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