São Paulo, domingo, 21 de agosto de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Depoimentos de nazistas a psiquiatra do Exército americano, em meio ao julgamento de Nuremberg, expõem as entranhas da Alemanha de Hitler e mostram a perturbadora natureza humana dos réus

Nazistas no divã

MARCOS GUTERMAN
EDITOR-ADJUNTO DE MUNDO

Mordam-se, historiadores. Coube a um psiquiatra o privilégio de ter conversado com o objeto do desejo de dez em dez pesquisadores da Segunda Guerra Mundial: os líderes nazistas.
Melhor ainda: Leon Goldensohn, o psiquiatra em questão, entrevistou esses líderes em seu momento de fraqueza, em 1946, durante o julgamento de Nuremberg. Isto é: derrotados na guerra e diante da perspectiva de enfrentarem a pena de morte por enforcamento, as autoridades nazistas transformadas em réus estavam fragilizadas o bastante para falarem abertamente sobre suas vidas, seus colegas de governo e as atrocidades cometidas pelo Terceiro Reich.
O resultado disso foi anotado em cadernos que estavam em poder da família de Goldensohn e se tornaram públicos no livro "As Entrevistas de Nuremberg", lançado na semana passada no Brasil pela Companhia das Letras.
Goldensohn, que integrava o Exército americano, não era o único especialista a trabalhar em Nuremberg com a função de zelar pela manutenção da saúde mental dos réus. Tampouco foi o único a ter seus registros transformados em livro. Mas ele era o mais bem-visto pelos réus, e suas anotações são as mais detalhadas de todas, o que torna seu trabalho especialmente significativo.
Embora sua preocupação fosse claramente médica, Goldensohn produziu um material que preenche um importante vácuo historiográfico. As declarações dos líderes nazistas disponíveis até agora geralmente ou eram registros de seus discursos quando no poder ou haviam sido tomadas em depoimentos a tribunais como o de Nuremberg, sob orientação de advogados. Os depoimentos que Goldensohn obteve aproximam-se de confissões, e isso muda tudo.

Disfarces morais
A maioria dos entrevistados repete, quase como um mantra, que não sabia das atrocidades do regime que integrava, embora participasse do altíssimo escalão -caso de Hermann Goering, o número dois de Hitler.
Eles culpam Hitler, Heinrich Himmler (chefe da SS, tropa de elite nazista) e Joseph Goebbels (ministro da Propaganda), todos mortos quando o tribunal foi estabelecido. É uma mentira óbvia, contada não só pelos criminosos notórios, como Goering, mas também por aqueles que eram vistos como "bons nazistas", como Albert Speer, o arquiteto e ministro de armamentos de Hitler.
No entanto, diante da inquirição de Goldensohn, freqüentemente aguda, os entrevistados falam muito mais do que estavam dispostos a admitir no tribunal, abrindo mão dos disfarces legais e morais que o momento exigia. A soma de todos os depoimentos é, assim, um retrato das entranhas do nazismo, de sua razão de ser e de sua trajetória.
Como psiquiatra, Goldensohn conversa com seus "pacientes" acerca de obsessões, vida pregressa e relações sociais. Hans Frank, administrador da Polônia durante a guerra, fala das amantes; Goering comenta sua obsessão por obras de arte e luxo; Joachim von Ribbentrop, o chanceler de Hitler, revela que ainda estava deprimido por causa da morte do pai.
A partir desse perfil, os entrevistados colocam-se não como monstros, mas como seres humanos, e seus atos inscrevem-se na história, e não na demonologia.
É exatamente isso que torna o trabalho de Goldensohn perturbador, conforme diz Robert Gellately, o organizador do livro, na entrevista abaixo.
Mesmo derrotados, os réus reafirmam com naturalidade suas disposições mais profundas, como o anti-semitismo, justificam o nazismo como um esforço legítimo para conter judeus e comunistas e fazem análises catastróficas sobre o mundo que estava se erguendo sobre os escombros do Império de Mil Anos.


Texto Anterior: Países andinos de maioria indígena são os mais imprevisíveis
Próximo Texto: Nuremberg foi justo com nazistas, diz historiador
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.