São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2001

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Escola afegã funciona ao ar livre

KENNEDY ALENCAR
ENVIADO A JABAL-SARAJ (AFEGANISTÃO)

A professora Malali diz que não usaria a burga, vestimenta que cobre todo o corpo da mulher e que tem um retângulo de renda na altura dos olhos para permitir que se enxergue. "Mas o Afeganistão não é um país civilizado. Enquanto não houver paz, é melhor usar a burga, ela nos protege", diz.
Segundo ela, sem a burga, seria vítima da ira dos homens do país. "No mínimo, seria agredida verbalmente na rua, senão apedrejada. Perderia minhas amigas. Muitas coisas ruins aconteceriam. E essas coisas não me deixam escolha", afirma a professora de uma escola para meninas na parte do Afeganistão controlada pela Aliança do Norte.
Os rebeldes são menos radicais que o Taleban, que fechou as escolas para meninas e açoita publicamente as mulheres que saem de casa sem a companhia do marido ou de um parente próximo. No entanto a Aliança do Norte também trata a mulher com alto grau de machismo, sempre justificado pelos costumes culturais e pelos versos do Corão.
Contrariada por ter sido convidada a falar da escola e estar respondendo apenas a perguntas sobre a burga, Malali diz, num tom de voz impaciente: "Entenda nossos costumes. Podem não ser certos, mas são os costumes daqui. Não há como fugir deles".
O diretor da escola, Said Mohammad, que impôs como condição nada de fotos para apresentar uma de suas professoras, trancadas em uma sala quando o repórter da Folha chegou para visitar a escola, decide interferir, também demonstrando impaciência: "Há 30 anos, a burga não era obrigatória no Afeganistão. Nas cidades grandes, as mulheres não a usavam. Mas o Afeganistão mudou muito nos últimos 30 anos. Vamos falar da escola, por favor, ou encerramos a entrevista".
Malali concorda em responder a perguntas pessoais antes de nos restringirmos à escola. Aos 34 anos, tem seis filhos, quatro meninos e duas meninas. Conta que os cinco filhos mais velhos vêm para a escola com ela. "São os primeiros em suas séries, porque os faço estudar à tarde em casa."
Seu salário é de 6,5 lakes ou 650 mil afeganis da região -o equivalente a US$ 16. Ela não recebe todo mês, mas a cada três ou quatro meses. "Entendo que nosso governo [a Aliança do Norte" tem dificuldades. Eu viria mesmo que não ganhasse nada. Estou fazendo um trabalho pela comunidade", afirma, gesticulando nervosamente as mãos de unhas pintadas de vermelho.
Quando ganha o dinheiro, diz que dá tudo para o marido, que é professor numa escola só para meninos. Apesar disso, ela relata que pode interferir nos gastos, "porque é a mulher que sabe as necessidades de uma casa". Ela diz que no Afeganistão todos os que trabalham numa casa juntam seu dinheiro para dar ao chefe de família, sempre um homem.
Desta vez não há conversa, o diretor pede que a entrevista seja interrompida e manda Malali se trancar na sala onde estão as outras professoras. Gentilmente, Said Mohammad, 68, monitora um passeio pelo estabelecimento que dirige há mais de 20 anos.

Prédio destruído
Na escola para meninas de Ushtageram, estudam mais de 800 alunas, da 1ª à 12ª série, o equivalente aos ensinos básico e médio brasileiros. O horário de aula é das 8h às 12h35 na primavera e no outono. No verão, as aulas vão até as 13h. No inverno, acabam ao meio-dia. Dos 12 meses do ano, 9 são de aulas e 3 de férias.
Como o prédio principal foi destruído nas três vezes em que o Taleban atacou a região de Ushtageram, que fica na Província de Kapisa, as salas de aula são ao ar livre, perto do que sobrou dos muros que cercavam a escola.
Alunas de classes mais avançadas ensinam as outras, já que as professoras continuam trancadas em uma das três salas da escola, num prédio pequeno e novo, no qual também ficam a sala do diretor e um almoxarifado. Na 12ª série de Ushtageram, há estudantes de mais de 20 anos, com o corpo também devidamente coberto pela burga.
Para começar a estudar, a idade mínima é 7 anos, mas há meninas com bebês de colo prestando atenção à "aluna-assistente" que ensina persa, a língua da região. Também há crianças mais velhas e alguns meninos. Até a segunda série estudantes de até 11 anos, são aceitos alguns meninos que moram perto e que teriam de andar muito para chegar à escola masculina. Após essa idade, meninos e meninas estudam separados.




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