São Paulo, domingo, 21 de novembro de 2004

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PERFIL

Sem notável aptidão intelectual, político se destacou como campeão de judô; discreto e obstinado, aos poucos impôs seu estilo de governo

Punho forte e distância da "lama" russa fazem Putin subir

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

O dia crucial para a espantosa ascensão de Vladimir Vladimirovich Putin foi 31 de dezembro de 1999. Ele era primeiro-ministro havia quatro meses. O presidente Boris Ieltsin foi à televisão e disse que, com o novo milênio, a Federação Russa renovaria seus dirigentes. Renunciou e nomeou Putin presidente interino.
Putin foi eleito com 53% dos votos em março seguinte. Reelegeu-se este ano com 71%.
A história não foi muito bem contada por Ieltsin. Com problemas de saúde e alcoolismo, o então presidente tolerava uma espécie de máfia no Kremlin e, segundo relato recente da "London Review of Books", sacava para uso pessoal, de um banco londrino, fundos abastecidos por misteriosos depositantes.
Para entregar o cargo Ieltsin pediu a impunidade. Putin a deu. Começava uma nova etapa na carreira do atual presidente, um burocrata obscuro, discreto, que sorri pouco e fala menos ainda e que trabalhou por 17 anos como espião da KGB, a polícia secreta do período soviético.
Nada indicava que Putin, 52, voasse tão alto. Com 1,75m, é de estatura regular para os padrões de São Petersburgo, onde nasceu a 7 de outubro de 1952. É casado com Ludmila, formada em filologia, e tem duas filhas, Katya e Masha. A família deu à cadelinha poodle o nome de Tosca, personagem de uma ópera de Puccini.
Sem nenhuma notável aptidão intelectual, Putin se destacou no colegial, como estudante de direito e como campeão de judô e sambo, espécie de luta marcial. Fala um alemão fluente, e seu inglês é razoável, como milhares de pessoas em seu país com boa formação em línguas estrangeiras.
A mídia o descobriu em julho de 1998. Boris Ieltsin tirou-o do limbo dos assessores anônimos e o nomeou diretor do Serviço de Segurança Federal, sucessor doméstico da KGB. Tornou-se em seguida secretário do Conselho de Segurança, de onde comandou a segunda investida pesada na Tchetchênia -100 mil soldados para caçar 2 mil rebeldes na pequena república de 865 mil habitantes e que é menos extensa que o município de São Paulo.
Grozni, a capital tchetchena, virou cinzas. Putin era um homem "de punho forte", característica apreciada pelos russos. Como premiê, chefiou campanha que deu maioria confortável ao governo na Duma (Câmara dos Deputados). Não seria um premiê efêmero, como os cinco que o precederam nos 17 meses anteriores à sua nomeação.
Putin tem origem modesta. Seu pai era metalúrgico. Seus dois primeiros irmãos morreram antes de ele nascer, o primeiro sob os efeitos da desnutrição durante o cerco alemão a Stalingrado, um dos nomes de São Petersburgo nos anos de comunismo.
Aos 23 anos, já formado em direito, Putin era recrutado pela KGB. Tem uma carreira entre fria e morna. Especializa-se em espionagem externa. Em 1985 é enviado à Alemanha Oriental. Sob falsa identidade de Adamov, dirige em Dresden uma associação pela amizade russo-germânica. Seu papel, secundário na hierarquia do serviço de inteligência, era provavelmente o de recrutar espiões e condensar relatórios sobre inteligência.
O muro de Berlim caiu no final de 1989. Putin volta à Rússia em 1990. Provavelmente ainda como espião é encarregado das relações externas da Universidade de São Petesburgo. Um ex-professor seu, Anatoly Sobchak, é eleito prefeito da cidade e o convida para sua assessoria. Quatro anos depois ele se tornaria prefeito adjunto. Sobchak é envolto num escândalo de corrupção. Putin o protege e chega a retirá-lo clandestinamente da Rússia para ele não ser preso.
Ieltsin já estava no Kremlin, por força do malogrado golpe militar de 1991 que acabou com o comunismo e com a União Soviética. Parte de sua assessoria tinha como origem a KGB e raízes em São Petesburgo. O duplo vínculo abre as portas a Putin.
É o período das privatizações e do gangsterismo oficial, de bilionários que surgem da noite para o dia e do homicídio como forma de eliminar concorrentes. Assassinaram uma centena de executivos do setor metalúrgico. Putin assessora de início Pavel Borodin, responsável pelas propriedades estatais. Borodin se envolveu em corrupção. Putin o denunciou.
O atual presidente russo, segundo seus biógrafos, mantém-se à margem dessa lama. Não entra na disputa por dinheiro com chefes imediatos ou ministros. É discreto, obstinado, competente. Boris Ieltsin notou sua presença.
A incursão na Tchetchênia lhe deu popularidade. A saída à francesa de Ieltsin lhe daria o poder.
Resta saber como exercê-lo. Há um diagnóstico coincidente. Putin é um "autocrata". Não que seja a reencarnação dos czares e do pan-eslavismo. Sua lógica é bem mais moderna. Mas nem por isso combina com os padrões ocidentais de democracia.
Um primeiro exemplo. Em agosto de 2000, o submarino nuclear Kursk naufraga com 118 ocupantes. Comoção mundial, porque os marinheiros não poderiam ser resgatados. Putin está de férias com a família no Mar Negro. Demora mais de uma semana para perceber que, embora logisticamente inócua, sua presença ao lado de familiares das vítimas é politicamente fundamental.
A mídia o cobre de críticas injuriosas. Em poucas semanas ele daria a volta por cima. Em lugar de responder às críticas, silencia a mídia. Manda prender Vladimir Gusinsky, banqueiro e dono da NTV, rede privada de televisão. Boris Berezovsky, dono de outra rede privada, a ORT, e de uma fortuna de US$ 3 bilhões, deixa a Rússia para o exílio. O país volta a se habituar com a autocensura.
Andrew Jack, correspondente do "Financial Times" em Moscou e autor de uma biografia de Putin ("Inside Putin's Russia") diz que para ele críticas de jornalistas são sinônimo de conspiração.
O atual ocupante do Kremlin referiu-se freqüentemente no início de seu primeiro mandato à necessidade de "restaurar a lei" como forma de evitar a implosão política e econômica da Rússia. Mas no dialeto dos autocratas lei é sinônimo de ordem. Putin quer evitar o caos comandado pela máfia dos novos ricos que ascenderam durante o governo Ieltsin.
Vem daí sua implicância com os "oligarcas", bilionários beneficiados pela privatização que dilapidou o patrimônio do Estado. Putin perseguiu alguns deles. Ganhou popularidade com isso. Para para efeitos de opinião pública é o vingador de uma pirâmide de renda -um punhado de ricos, uma classe média empobrecida e 25% de miseráveis- inimaginável durante o comunismo.
Tornaram-se bodes expiatórios desse processo de moralização pessoas como Platon Lebedev, dono do banco Menatep e sócio de Mikhail Khodorkovskys, ex-proprietário da Yukos, conglomerado petrolífero. Alguns oligarcas estão presos, outros, exilados. Há ainda um terceiro grupo que aderiu ao presidente e patrocina a mídia pró-governo.
Graças a ela episódios escandalosos tiveram a percepção canalizada de modo a favorecer Putin. Exemplo. Rebeldes tchetchenos seqüestram público e artistas no Teatro Dubrovka, de Moscou. A polícia coloca gás letal no sistema de ventilação e mata, com os terroristas, 129 reféns. A culpa é dos tchetchenos. Putin, para seus aliados, nada teve a ver com isso.
Outro exemplo: um comando tchetcheno seqüestra os ocupantes de uma escola de Beslan, cidade na Ossétia do Norte. O episódio, em setembro último, acaba com cerca de 330 mortos, metade deles crianças. É claro que os terroristas agiram de modo monstruoso. Mas as críticas à inabilidade do governo na condução da crise foram feitas na Europa e nos Estados Unidos, não na Rússia.
Por conta da tragédia de Beslan e para "combater com eficiência o terrorismo", Vladimir Putin passou a centralizar mais poderes. Acabou com as eleições diretas para os governadores das 89 regiões e suprimiu o voto distrital para as eleições legislativas, o que reduz a representatividade política das minorias e oposição.
Ainda na última quinta Putin contestou em entrevista na TV que esteja se opondo à democracia. Afirmou, em outras palavras, que fortalecia o Estado para que o país não se fragmentasse pela ação do terrorismo e da ambição dos milionários oligargas.


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