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PERFIL
Sem notável aptidão intelectual, político se destacou como campeão de judô; discreto e obstinado, aos poucos impôs seu estilo de governo
Punho forte e distância da "lama" russa fazem Putin subir
JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL
O dia crucial para a espantosa
ascensão de Vladimir Vladimirovich Putin foi 31 de dezembro
de 1999. Ele era primeiro-ministro havia quatro meses. O presidente Boris Ieltsin foi à televisão
e disse que, com o novo milênio,
a Federação Russa renovaria
seus dirigentes. Renunciou e nomeou Putin presidente interino.
Putin foi eleito com 53% dos
votos em março seguinte. Reelegeu-se este ano com 71%.
A história não foi muito bem
contada por Ieltsin. Com problemas de saúde e alcoolismo, o então presidente tolerava uma espécie de máfia no Kremlin e, segundo relato recente da "London
Review of Books", sacava para
uso pessoal, de um banco londrino, fundos abastecidos por misteriosos depositantes.
Para entregar o cargo Ieltsin
pediu a impunidade. Putin a deu.
Começava uma nova etapa na
carreira do atual presidente, um
burocrata obscuro, discreto, que
sorri pouco e fala menos ainda e
que trabalhou por 17 anos como
espião da KGB, a polícia secreta
do período soviético.
Nada indicava que Putin, 52,
voasse tão alto. Com 1,75m, é de
estatura regular para os padrões
de São Petersburgo, onde nasceu
a 7 de outubro de 1952. É casado
com Ludmila, formada em filologia, e tem duas filhas, Katya e
Masha. A família deu à cadelinha
poodle o nome de Tosca, personagem de uma ópera de Puccini.
Sem nenhuma notável aptidão
intelectual, Putin se destacou no
colegial, como estudante de direito e como campeão de judô e
sambo, espécie de luta marcial.
Fala um alemão fluente, e seu inglês é razoável, como milhares de
pessoas em seu país com boa formação em línguas estrangeiras.
A mídia o descobriu em julho
de 1998. Boris Ieltsin tirou-o do
limbo dos assessores anônimos e
o nomeou diretor do Serviço de
Segurança Federal, sucessor doméstico da KGB. Tornou-se em
seguida secretário do Conselho
de Segurança, de onde comandou a segunda investida pesada
na Tchetchênia -100 mil soldados para caçar 2 mil rebeldes na
pequena república de 865 mil habitantes e que é menos extensa
que o município de São Paulo.
Grozni, a capital tchetchena,
virou cinzas. Putin era um homem "de punho forte", característica apreciada pelos russos.
Como premiê, chefiou campanha que deu maioria confortável
ao governo na Duma (Câmara
dos Deputados). Não seria um
premiê efêmero, como os cinco
que o precederam nos 17 meses
anteriores à sua nomeação.
Putin tem origem modesta. Seu
pai era metalúrgico. Seus dois
primeiros irmãos morreram antes de ele nascer, o primeiro sob
os efeitos da desnutrição durante
o cerco alemão a Stalingrado, um
dos nomes de São Petersburgo
nos anos de comunismo.
Aos 23 anos, já formado em direito, Putin era recrutado pela
KGB. Tem uma carreira entre
fria e morna. Especializa-se em
espionagem externa. Em 1985 é
enviado à Alemanha Oriental.
Sob falsa identidade de Adamov,
dirige em Dresden uma associação pela amizade russo-germânica. Seu papel, secundário na
hierarquia do serviço de inteligência, era provavelmente o de
recrutar espiões e condensar relatórios sobre inteligência.
O muro de Berlim caiu no final
de 1989. Putin volta à Rússia em
1990. Provavelmente ainda como
espião é encarregado das relações externas da Universidade de
São Petesburgo. Um ex-professor seu, Anatoly Sobchak, é eleito
prefeito da cidade e o convida
para sua assessoria. Quatro anos
depois ele se tornaria prefeito adjunto. Sobchak é envolto num escândalo de corrupção. Putin o
protege e chega a retirá-lo clandestinamente da Rússia para ele
não ser preso.
Ieltsin já estava no Kremlin,
por força do malogrado golpe
militar de 1991 que acabou com o
comunismo e com a União Soviética. Parte de sua assessoria tinha como origem a KGB e raízes
em São Petesburgo. O duplo vínculo abre as portas a Putin.
É o período das privatizações e
do gangsterismo oficial, de bilionários que surgem da noite para
o dia e do homicídio como forma
de eliminar concorrentes. Assassinaram uma centena de executivos do setor metalúrgico. Putin
assessora de início Pavel Borodin, responsável pelas propriedades estatais. Borodin se envolveu em corrupção. Putin o denunciou.
O atual presidente russo, segundo seus biógrafos, mantém-se à margem dessa lama. Não entra na disputa por dinheiro com
chefes imediatos ou ministros. É
discreto, obstinado, competente.
Boris Ieltsin notou sua presença.
A incursão na Tchetchênia lhe
deu popularidade. A saída à francesa de Ieltsin lhe daria o poder.
Resta saber como exercê-lo. Há
um diagnóstico coincidente. Putin é um "autocrata". Não que seja a reencarnação dos czares e do
pan-eslavismo. Sua lógica é bem
mais moderna. Mas nem por isso
combina com os padrões ocidentais de democracia.
Um primeiro exemplo. Em
agosto de 2000, o submarino nuclear Kursk naufraga com 118
ocupantes. Comoção mundial,
porque os marinheiros não poderiam ser resgatados. Putin está
de férias com a família no Mar
Negro. Demora mais de uma semana para perceber que, embora
logisticamente inócua, sua presença ao lado de familiares das
vítimas é politicamente fundamental.
A mídia o cobre de críticas injuriosas. Em poucas semanas ele
daria a volta por cima. Em lugar
de responder às críticas, silencia
a mídia. Manda prender Vladimir Gusinsky, banqueiro e dono
da NTV, rede privada de televisão. Boris Berezovsky, dono de
outra rede privada, a ORT, e de
uma fortuna de US$ 3 bilhões,
deixa a Rússia para o exílio. O
país volta a se habituar com a autocensura.
Andrew Jack, correspondente
do "Financial Times" em Moscou e autor de uma biografia de
Putin ("Inside Putin's Russia")
diz que para ele críticas de jornalistas são sinônimo de conspiração.
O atual ocupante do Kremlin
referiu-se freqüentemente no
início de seu primeiro mandato à
necessidade de "restaurar a lei"
como forma de evitar a implosão
política e econômica da Rússia.
Mas no dialeto dos autocratas lei
é sinônimo de ordem. Putin quer
evitar o caos comandado pela
máfia dos novos ricos que ascenderam durante o governo Ieltsin.
Vem daí sua implicância com
os "oligarcas", bilionários beneficiados pela privatização que dilapidou o patrimônio do Estado.
Putin perseguiu alguns deles. Ganhou popularidade com isso. Para para efeitos de opinião pública
é o vingador de uma pirâmide de
renda -um punhado de ricos,
uma classe média empobrecida e
25% de miseráveis- inimaginável durante o comunismo.
Tornaram-se bodes expiatórios desse processo de moralização pessoas como Platon Lebedev, dono do banco Menatep e
sócio de Mikhail Khodorkovskys, ex-proprietário da Yukos, conglomerado petrolífero.
Alguns oligarcas estão presos,
outros, exilados. Há ainda um
terceiro grupo que aderiu ao presidente e patrocina a mídia pró-governo.
Graças a ela episódios escandalosos tiveram a percepção canalizada de modo a favorecer Putin.
Exemplo. Rebeldes tchetchenos
seqüestram público e artistas no
Teatro Dubrovka, de Moscou. A
polícia coloca gás letal no sistema
de ventilação e mata, com os terroristas, 129 reféns. A culpa é dos
tchetchenos. Putin, para seus
aliados, nada teve a ver com isso.
Outro exemplo: um comando
tchetcheno seqüestra os ocupantes de uma escola de Beslan, cidade na Ossétia do Norte. O episódio, em setembro último, acaba
com cerca de 330 mortos, metade deles crianças. É claro que os
terroristas agiram de modo
monstruoso. Mas as críticas à
inabilidade do governo na condução da crise foram feitas na
Europa e nos Estados Unidos,
não na Rússia.
Por conta da tragédia de Beslan
e para "combater com eficiência
o terrorismo", Vladimir Putin
passou a centralizar mais poderes. Acabou com as eleições diretas para os governadores das 89
regiões e suprimiu o voto distrital para as eleições legislativas, o
que reduz a representatividade
política das minorias e oposição.
Ainda na última quinta Putin
contestou em entrevista na TV
que esteja se opondo à democracia. Afirmou, em outras palavras,
que fortalecia o Estado para que
o país não se fragmentasse pela
ação do terrorismo e da ambição
dos milionários oligargas.
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