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São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 2003

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"Monstro" pode virar "mártir" no julgamento

DA REPORTAGEM LOCAL

Dois especialistas consultados pela Folha divergem sobre os efeitos do julgamento de Saddam Hussein no mundo árabe.
O ex-ditador no banco dos réus daria um exemplo de normalidade institucional e reforçaria a idéia de democracia, diz Laurence Rothenberg, do Centro de Estudos Internacionais e Estratégicos, baseado em Washington.
O grande risco de um julgamento público de Saddam está na possibilidade de ele se transformar em "mártir" de causas de imensa receptividade entre os árabes do Oriente Médio, como o nacionalismo muçulmano, o anti-sionismo e o antiamericanismo, diz Mustafá Hamarneh, diretor do Centro de Estudos Estratégicos da Universidade da Jordânia.
Os EUA esperam que o julgamento, ao expor as atrocidades cometidas pelo ex-ditador, ajude a justificar tanto a invasão quanto a ocupação do Iraque.
Rothenberg diz que o julgamento exemplificaria como a Justiça e o respeito pelos direitos humanos podem ser estabelecidos no Oriente Médio. Seria ainda uma advertência a outros ditadores.
Por fim, o julgamento permitiria que os iraquianos colocassem um fim em décadas de autoritarismo e transformassem o país numa sociedade livre.
Esse otimismo não é compartilhado por Hamarneh. Com a possível martirização de Saddam, diz ele, sairiam perdendo "setores do mundo árabe que trabalham na direção da democracia e de sociedades modernas e pluralistas". Tais segmentos não teriam como reagir ao fortalecimento de valores de setores arcaicos.
Ou seja, o efeito didático do julgamento, aparentemente desejado por George W. Bush, pode produzir resultados opostos.
Hamarneh argumenta que as coisas já começaram mal nesta semana. Embora a opinião pública árabe não tenha nada de homogênea, ela se perguntou por que Saddam foi "covarde".
Mesmo assim, no entanto, Saddam surgiu na TV como um prisioneiro humilhado. Despertou compaixão, solidariedade. "Algumas das manifestações dentro e fora do Iraque eram muito mais anti-EUA do que pró-Saddam", diz o cientista político jordaniano.
Assim, mesmo em posição de força no Iraque, os americanos podem ter sofrido uma perda política, porque juntaram contra si forças tão díspares quanto a coalizão de nacionalistas, os islâmicos e até alguns comunistas.
O julgamento, se for aberto e público, será uma guerra de propaganda, diz Hamarneh, da qual Saddam pode sair vencedor. Ele poderá, por exemplo, investir contra a família real saudita, sem que ela possa censurar a mídia -as TVs via satélite terão todo o interesse de mostrar ao máximo um caso que mobilizará as atenções de Marrocos a Cingapura.
Em resumo, os EUA têm sido inábeis, diz Hamarneh. Não conseguiram em oito meses de ocupação demonstrar aos iraquianos a superioridade da democracia. E poderão ter o êxito representado pela captura transformado em derrota política. (JBN)


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