São Paulo, quarta-feira, 21 de dezembro de 2005

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ARTIGO

Chance de reinventar a democracia

FERNANDO MAYORGA
ESPECIAL PARA A FOLHA

A vitória contundente de Evo Morales nas eleições gerais constitui um marco histórico. Por um lado, encerra-se um ciclo de fase democrática iniciada em 1982, ciclo esse que se caracterizou pela formação de coalizões governamentais majoritárias por meio de pactos partidários. Por outro lado, a presença de um líder camponês indígena na Presidência põe fim a um sistema -formal e informal- de exclusão política e social vigente desde a fundação da República. Como diz um slogan do organismo eleitoral boliviano, buscando promover a participação dos cidadãos na eleição: "Agora a democracia é diferente", independentemente das características do futuro governo.
Tendo conquistado mais de 50% dos votos nacionais, o MAS obteve o primeiro lugar em cinco dos nove departamentos e o segundo lugar nos importantes distritos de Tarija e Santa Cruz, regiões ricas em gás natural. Embora não disponha de maioria em nenhuma das duas câmaras do Congresso, o MAS (Movimento ao Socialismo) é a força mais importante de um sistema partidário renovado que revela o surgimento de duas forças -Podemos, que obteve 31% dos votos, e UN (Unidade Nacional), que conquistou 8%- e a persistência do MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário), com 7%. Este último é o único sobrevivente do esquema partidário tradicional.
Antes de examinar as perspectivas da administração comandada por Morales, é preciso assinalar que o cenário de polarização política e social que caracterizou a Bolívia nos últimos cinco anos pode se atenuar, em função da enorme legitimidade presidencial que provém das urnas e das coincidências programáticas em torno dos temas centrais da campanha.
Refiro-me a uma política energética com ênfase na ampliação do papel do Estado, à realização da Assembléia Constituinte e à implementação das autonomias departamentais, como processo de reforma do modelo centralizador do Estado.
O panorama pós-eleitoral apresenta três dimensões problemáticas que devem ser enfrentadas pelo novo governo para que se possa desenhar um novo esquema de governabilidade democrática. Trata-se das relações entre o Poder Executivo e o Congresso nacional, dos vínculos entre o governo central e as autoridades regionais e das articulações entre o partido governante e os movimentos sociais. Essa tríade de relações evidencia um quadro complexo de atores políticos e sociais que exige um manejo equilibrado da gestão política, na medida em que sua ação se assenta sobre demandas distintas e, de certa forma, contrapostas. Vejamos quais são essas três dimensões, começando por assinalar que os resultados eleitorais reduziram a margem de incerteza e os riscos de uma reencenação automática dos conflitos dos últimos meses.
Em primeiro lugar, a governabilidade não se concentra nas relações entre os poderes Executivo e Legislativo, e, em todo caso, não existem possibilidades certas de formação de uma coalizão majoritária de oposição ao MAS que se traduza em um bloqueio legislativo das iniciativas presidenciais. O que existe, melhor, é a possibilidade de se cumprir a agenda de reformas em torno da Constituinte e o referendo sobre autonomia dos departamentos, a partir de consensos básicos e acordos específicos no âmbito parlamentar.
Em segundo lugar, a modificação dos vínculos entre as regiões e o Estado, com a existência de autoridades políticas departamentais eleitas nas urnas, não constitui cenário desfavorável, considerando-se que não existe uma corrente política dominante.
Em terceiro lugar, a distribuição territorial e social do voto a favor de Evo Morales e as raízes sindicais e comunitárias dessa organização política impedem que, a curto prazo, as reivindicações de movimentos sociais mais radicais em suas propostas constituam um fator de pressão para o futuro governo. Nessa medida, a esquerda sindical e extraparlamentar deve confrontar-se com a solidez organizacional do MAS e sua capacidade representativa. Vem daí a importância da capacidade de gestão concentrada no presidente, que, por sorte, tem como capital político uma vitória inquestionável e a possibilidade de reinventar a democracia, fortalecendo-a.


O sociólogo Fernando Mayorga é diretor do Centro de Estudos Universitários Superiores da Universidade Pública Maior de San Simón (Bolívia)

Tradução de Clara Allain


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