São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 2008

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"Abertura ignorou muitos chineses"

Para Jia Zhang-ke, que narra impacto das mudanças econômicas em seus filmes, a vida melhorou, mas não para todos

Cineasta afirma que sistema precisa mudar por dentro e critica efeito do crescimento rápido; crise pode provocar uma volta ao campo, diz ele

DE PEQUIM

"Aos seis anos, nós ainda passávamos fome normalmente, a primeira TV chegou em 1978 e só conheci Bruce Lee e os filmes de kung fu nos anos 80." Jia Zhang-ke, 38, considerado o maior nome da chamada Sexta Geração de cineastas chineses, conta à Folha o que significa para ele os 30 anos de reformas econômicas. Mas alerta que "existe a China decorada, de Pequim e Xangai, e a China real de 800 milhões de camponeses que são muito pobres". Migrantes rurais, operárias têxteis e gente que foi despejada para dar lugar à construção da usina de Três Gargantas habitam seus filmes. Ele venceu o festival de Veneza de 2006 com "Em Busca da Vida", e alguns de seus 10 longas-metragens foram exibidos no Brasil, como "O Mundo", "Plataforma" e "Prazeres Desconhecidos". O último, "24 City", concorreu no último festival de Cannes. Jia produziu um filme rodado em São Paulo, "Plastic City" e esteve na Mostra de Cinema de São Paulo em 2006. Pretende voltar na próxima edição.
Considerado um dos poucos grandes cineastas chineses que ainda não foi cooptado pelo Partido Comunista, ele avalia as reformas e a crise econômica chinesa na entrevista abaixo. (RAUL JUSTE LORES)

 

FOLHA - Você tinha oito anos quando a abertura começou. Quais eram as mudanças mais nítidas?
JIA ZHANG-KE
- Houve uma evolução material inegável nesses 30 anos. Meus pais são membros do Partido Comunista, ele professor de chinês, ela vendedora de loja de departamentos. Nasci em 1970 e lembro que ainda passávamos fome e tínhamos pouco o que comer em 1976. Só em 1978, tivemos a primeira televisão, que foi dada pela "unidade de trabalho" da minha mãe, e em 1982, a primeira máquina de lavar. Até o final dos anos 70, a diversão era ver filmes de propaganda comunista e ir a museus ver peças "revolucionárias".

FOLHA - Quando você se deu conta das mudanças?
JIA
- Nos anos 80, surgiu um submundo. Chegavam fitas cassete piratas de Taiwan e Hong Kong com músicas modernas, e vimos os primeiros filmes de Bruce Lee e Jackie Chan, do kung fu de Hong Kong. Minha mãe assistia a Escrava Isaura todos os dias. Foi um grande impacto. Viajar de uma Província para outra sem precisar de autorização do chefe da sua unidade de trabalho também foi um alívio.

FOLHA - Seus filmes mostram os chineses que menos se beneficiaram da prosperidade econômica.
JIA
- Apesar do progresso material, há enorme pressão psicológica, insegurança. E não dá para deixar de mostrar os que foram deixados para trás. Há a China decorada, Pequim, Xangai, que querem parecer Nova York, mas há 800 milhões de camponeses pobres, a maioria, que vive longe da China decorada. Se você chega a Pequim de avião, vê os arranha-céus, o aeroporto, as grandes vias. Mas se chega de trem ou ônibus, vê uma cidade pobre. Como faltam críticos neste país, acho que é papel dos artistas lembrar que os pobres existem.

FOLHA - Há milhares de fábricas fechando na Província de Cantão e o desemprego cresce na China, sobretudo entre os 200 milhões de migrantes rurais. Essa crise pode mudar a relação entre povo e governo?
JIA
- É difícil prever, mas se as fabricas continuarem a fechar, não duvido que milhões voltem para o campo, onde têm terra. A China ainda é um país profundamente agrário. A vida em algumas de nossas grandes cidades é pior que no campo. Veja os operários das grandes fábricas, eles vivem do dormitório para a linha de montagem, de domingo a domingo.

FOLHA - Você acaba de rodar um curta publicitário dos dez anos de uma revista, e destaca vários fatos importantes da década. Se tivesse que fazer a mesma coisa dos últimos 30 anos, o que acrescentaria?
JIA
- Precisaria mostrar um tabu, que é o que aconteceu na Praça da Paz Celestial em 1989. Foi um grande passo para trás para aqueles que querem liberdade e democracia. Muita gente acha que os jovens chineses só querem dinheiro, mas eu digo que nem todos são assim.

FOLHA - Há interesse entre os jovens sobre esse passado recente?
JIA
- A geração que nasceu nos anos 80 não sabe nada do massacre, é nosso dever contar. Desejo que a China mude mais o sistema político, não só o econômico. Mas hoje ainda seria impossível obter permissão para falar desse assunto, mesmo em um curta-metragem.

FOLHA - "Em busca da vida" fala dos milhões de pessoas que foram despejadas para a construção da usina de Três Gargantas, outro tabu, em um país onde remoções são freqüentes. Como driblou a censura?
JIA
- Meu roteiro original, apresentado à Administração Estatal de Cinema, Rádio e Televisão, falava apenas que era uma história de amor. Foi aprovado, mas mandaram seis espiões/censores para vigiar as filmagens. Como rodamos em prédios em ruínas, muito úmidos e quentes, eles só agüentaram alguns dias. Temos que fazer cinema do jeito chinês. Cabe a nós contornar a censura.

FOLHA - Então o que se vê no cinema é o que você queria filmar?
JIA
- A única cena cortada foi quando duas estátuas, uma de Mao Tsé-tung e outra de Karl Marx, ruíram em meio às obras. Não deixaram inclui-la no filme. Trabalho dentro do sistema, tento mudá-lo de dentro.

FOLHA - Em "O Mundo", você mostra um parque de diversões repleto de réplicas de monumentos históricos ocidentais, cujos funcionários são migrantes rurais. Você ironiza a ocidentalização da China.
JIA
- A ocidentalização é sinal de status. Veja os outdoors dos condomínios fechados de Pequim, todos falam de Roma, Miami. Nunca da China. Os jovens só querem saber de música ocidental. Mas há valores universais, como direitos humanos e igualdade, em que ainda precisamos avançar muito.

FOLHA - Uma explicação muito difundida sobre a China pós-massacre da Paz Celestial é que a juventude trocou a luta pela democracia por prosperidade. Você concorda?
JIA
- Em muitos casos, os jovens estão desorientados. Antes todos tinham trabalho, hoje há uma pressão enorme, insegurança. Muita gente jovem realmente só pensa em dinheiro, sucesso e forma física. Quando, na Olimpíada, não deixaram uma menina com uma bela voz cantar ao vivo porque não era "bonita", é um bom exemplo disso.

FOLHA - A Olimpíada não mudou a China.
JIA
- Muita gente como eu tinha esperanças de que a Olimpíada fosse abrir mais o país, democratizar um pouco, mas em alguns aspectos até parece que andou para trás.

FOLHA - No exterior, o cinema chinês é conhecido por produções de época como "O Tigre e o Dragão". É tabu falar da China atual?
JIA
- Os filmes de ação, com cenas de kung fu, dão ótimas bilheterias aqui e no exterior, os produtores querem. E fazer produção de época nos tempos imperiais é mais seguro, não tem atritos com a censura.

FOLHA - Seu próximo filme tem artes marciais e é de época.
JIA
- Para mim, kung fu é nostalgia. Mas o pano de fundo é diferente, o filme se passa em 1905, época em que a China queria se tornar uma potência mundial. Meio como agora.

FOLHA - Você já sente a crise aqui?
JIA
- Nesta época de Natal, eu dirijo cinco filmes publicitários em um mês. Até agora, só tenho dois projetos. Somos parte de um mundo em crise, não é?


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