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"Abertura ignorou muitos chineses"
Para Jia Zhang-ke, que narra impacto das mudanças econômicas em seus filmes, a vida melhorou, mas não para todos
Cineasta afirma que sistema precisa mudar por dentro e critica efeito do crescimento rápido; crise pode provocar uma volta ao campo, diz ele
DE PEQUIM
"Aos seis anos, nós ainda passávamos fome normalmente, a
primeira TV chegou em 1978 e
só conheci Bruce Lee e os filmes de kung fu nos anos 80."
Jia Zhang-ke, 38, considerado o maior nome da chamada
Sexta Geração de cineastas chineses, conta à Folha o que significa para ele os 30 anos de reformas econômicas. Mas alerta
que "existe a China decorada,
de Pequim e Xangai, e a China
real de 800 milhões de camponeses que são muito pobres".
Migrantes rurais, operárias
têxteis e gente que foi despejada para dar lugar à construção
da usina de Três Gargantas habitam seus filmes. Ele venceu o
festival de Veneza de 2006 com
"Em Busca da Vida", e alguns
de seus 10 longas-metragens
foram exibidos no Brasil, como
"O Mundo", "Plataforma" e
"Prazeres Desconhecidos". O
último, "24 City", concorreu no
último festival de Cannes.
Jia produziu um filme rodado em São Paulo, "Plastic City"
e esteve na Mostra de Cinema
de São Paulo em 2006. Pretende voltar na próxima edição.
Considerado um dos poucos
grandes cineastas chineses que
ainda não foi cooptado pelo
Partido Comunista, ele avalia
as reformas e a crise econômica chinesa na entrevista abaixo.
(RAUL JUSTE LORES)
FOLHA - Você tinha oito anos
quando a abertura começou. Quais
eram as mudanças mais nítidas?
JIA ZHANG-KE - Houve uma evolução material inegável nesses
30 anos. Meus pais são membros do Partido Comunista, ele
professor de chinês, ela vendedora de loja de departamentos.
Nasci em 1970 e lembro que
ainda passávamos fome e tínhamos pouco o que comer em
1976. Só em 1978, tivemos a primeira televisão, que foi dada
pela "unidade de trabalho" da
minha mãe, e em 1982, a primeira máquina de lavar. Até o
final dos anos 70, a diversão era
ver filmes de propaganda comunista e ir a museus ver peças
"revolucionárias".
FOLHA - Quando você se deu conta
das mudanças?
JIA - Nos anos 80, surgiu um
submundo. Chegavam fitas
cassete piratas de Taiwan e
Hong Kong com músicas modernas, e vimos os primeiros
filmes de Bruce Lee e Jackie
Chan, do kung fu de Hong
Kong. Minha mãe assistia a Escrava Isaura todos os dias. Foi
um grande impacto. Viajar de
uma Província para outra sem
precisar de autorização do chefe da sua unidade de trabalho
também foi um alívio.
FOLHA - Seus filmes mostram os
chineses que menos se beneficiaram da prosperidade econômica.
JIA - Apesar do progresso material, há enorme pressão psicológica, insegurança. E não dá
para deixar de mostrar os que
foram deixados para trás. Há a
China decorada, Pequim, Xangai, que querem parecer Nova
York, mas há 800 milhões de
camponeses pobres, a maioria,
que vive longe da China decorada. Se você chega a Pequim de
avião, vê os arranha-céus, o aeroporto, as grandes vias. Mas se
chega de trem ou ônibus, vê
uma cidade pobre. Como faltam críticos neste país, acho
que é papel dos artistas lembrar
que os pobres existem.
FOLHA - Há milhares de fábricas fechando na Província de Cantão e o
desemprego cresce na China, sobretudo entre os 200 milhões de migrantes rurais. Essa crise pode mudar a relação entre povo e governo?
JIA - É difícil prever, mas se as
fabricas continuarem a fechar,
não duvido que milhões voltem
para o campo, onde têm terra. A
China ainda é um país profundamente agrário. A vida em algumas de nossas grandes cidades é pior que no campo. Veja
os operários das grandes fábricas, eles vivem do dormitório
para a linha de montagem, de
domingo a domingo.
FOLHA - Você acaba de rodar um
curta publicitário dos dez anos de
uma revista, e destaca vários fatos
importantes da década. Se tivesse
que fazer a mesma coisa dos últimos
30 anos, o que acrescentaria?
JIA - Precisaria mostrar um tabu, que é o que aconteceu na
Praça da Paz Celestial em 1989.
Foi um grande passo para trás
para aqueles que querem liberdade e democracia. Muita gente acha que os jovens chineses
só querem dinheiro, mas eu digo que nem todos são assim.
FOLHA - Há interesse entre os jovens sobre esse passado recente?
JIA - A geração que nasceu nos
anos 80 não sabe nada do massacre, é nosso dever contar. Desejo que a China mude mais o
sistema político, não só o econômico. Mas hoje ainda seria
impossível obter permissão para falar desse assunto, mesmo
em um curta-metragem.
FOLHA - "Em busca da vida" fala
dos milhões de pessoas que foram
despejadas para a construção da usina de Três Gargantas, outro tabu,
em um país onde remoções são freqüentes. Como driblou a censura?
JIA - Meu roteiro original,
apresentado à Administração
Estatal de Cinema, Rádio e Televisão, falava apenas que era
uma história de amor. Foi aprovado, mas mandaram seis espiões/censores para vigiar as
filmagens. Como rodamos em
prédios em ruínas, muito úmidos e quentes, eles só agüentaram alguns dias. Temos que fazer cinema do jeito chinês. Cabe a nós contornar a censura.
FOLHA - Então o que se vê no cinema é o que você queria filmar?
JIA - A única cena cortada foi
quando duas estátuas, uma de
Mao Tsé-tung e outra de Karl
Marx, ruíram em meio às obras.
Não deixaram inclui-la no filme. Trabalho dentro do sistema, tento mudá-lo de dentro.
FOLHA - Em "O Mundo", você mostra um parque de diversões repleto
de réplicas de monumentos históricos ocidentais, cujos funcionários
são migrantes rurais. Você ironiza a
ocidentalização da China.
JIA - A ocidentalização é sinal
de status. Veja os outdoors dos
condomínios fechados de Pequim, todos falam de Roma,
Miami. Nunca da China. Os jovens só querem saber de música ocidental. Mas há valores
universais, como direitos humanos e igualdade, em que ainda precisamos avançar muito.
FOLHA - Uma explicação muito difundida sobre a China pós-massacre
da Paz Celestial é que a juventude
trocou a luta pela democracia por
prosperidade. Você concorda?
JIA - Em muitos casos, os jovens estão desorientados. Antes todos tinham trabalho, hoje
há uma pressão enorme, insegurança. Muita gente jovem
realmente só pensa em dinheiro, sucesso e forma física.
Quando, na Olimpíada, não
deixaram uma menina com
uma bela voz cantar ao vivo
porque não era "bonita", é um
bom exemplo disso.
FOLHA - A Olimpíada não mudou a
China.
JIA - Muita gente como eu tinha esperanças de que a Olimpíada fosse abrir mais o país,
democratizar um pouco, mas
em alguns aspectos até parece
que andou para trás.
FOLHA - No exterior, o cinema chinês é conhecido por produções de
época como "O Tigre e o Dragão". É
tabu falar da China atual?
JIA - Os filmes de ação, com cenas de kung fu, dão ótimas bilheterias aqui e no exterior, os
produtores querem. E fazer
produção de época nos tempos
imperiais é mais seguro, não
tem atritos com a censura.
FOLHA - Seu próximo filme tem artes marciais e é de época.
JIA - Para mim, kung fu é nostalgia. Mas o pano de fundo é
diferente, o filme se passa em
1905, época em que a China
queria se tornar uma potência
mundial. Meio como agora.
FOLHA - Você já sente a crise aqui?
JIA - Nesta época de Natal, eu
dirijo cinco filmes publicitários
em um mês. Até agora, só tenho
dois projetos. Somos parte de
um mundo em crise, não é?
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