São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 2008

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ARTIGO

A China e o derretimento global

Com bases econômicas sólidas, país deve continuar crescendo com força e poderá servir de "âncora" mundial, embora impulso maior seja improvável ante as próprias limitações

FAN GANG
EM PEQUIM

A CHINA vem crescendo ao ritmo anual médio de 9,8% há três décadas. Durante a maior parte desse período os mercados mundiais estiveram favoráveis, sem grandes crises ou desaquecimentos econômicos ou financeiros. É verdade que houve crises regionais como a do sudeste asiático em 1997-98, o estouro da bolha habitacional do Japão em 1990 e da bolha hi-tech americana em 2000. Mas nenhuma foi obstáculo sério ao prolongado boom chinês.
Os últimos três meses, porém, foram acompanhados por desaceleração nas exportações, no investimento doméstico, na produção industrial e na receita tributária da China. Um desaquecimento de grandes proporções parece estar se configurando. Poderá o crescimento chinês rápido persistir? Eu creio que sim. A desaceleração atual da China se deve a causas em sua maioria internas. Desde 2004, o governo vem procurando esfriar uma economia superaquecida, reduzindo o índice de crescimento de 12% para um índice mais sustentável de 8% a 9%. Começou a taxar as exportações para reduzir o superávit comercial.
Se os responsáveis pela política econômica chinesa pudessem ter previsto o que acontece agora na economia global, talvez não tivessem se esforçado tanto para frear o crescimento. Mas uma razão pela qual a China vem conseguindo manter seu crescimento nos últimos 30 anos é que ela iniciou intervenções macroeconômicas contrárias aos ciclos do momento nas épocas de boom, em lugar de esperar por um colapso. O governo chinês nunca acreditou que deve deixar apenas o mercado decidir o que vai acontecer na economia. Quando não existe grande bolha, não há necessidade de preocupar-se com uma grande crise.

Base sólida
Outra razão pela qual o crescimento forte provavelmente continuará é que suas bases econômicas são sólidas. Os fatores que o incentivam continuam firmes: mão-de-obra de custo baixo, educação, alto índice de poupança, infra-estrutura que vem melhorando e urbanização acelerada. Ademais, a posição fiscal da China está entre as melhores do mundo. A razão entre endividamento do governo e PIB é de cerca de 20%, contra mais de 80% nos EUA, 160% no Japão e entre 60% e 90% na Europa.
A política monetária vem sendo prudente, e a ameaça de inflação foi reduzida pela queda recente nos preços do petróleo e das commodities. A balança de pagamentos internacionais continua em superávit, e ainda há um fluxo líquido de capitais entrando no país, apesar do arrocho global do crédito. As reservas oficiais em divisas chegarão em breve a US$ 2 trilhões. Assim, os responsáveis pela política econômica terão ampla margem de manobra no caso de algo dar errado.
O recente pacote de estímulo fiscal de US$ 568 bilhões -que será gasto com expansão do sistema ferroviário, construção de metrôs, programas habitacionais de baixo custo, sistemas de irrigação, seguridade social rural e saúde- vai acrescentar alguns pontos percentuais ao crescimento nos próximos dois anos. Com a política monetária e alguns controles administrativos sobre investimentos e gastos locais abrandados, o desaquecimento deve ser breve.
Mas nem tudo são boas notícias para a economia chinesa. O baixo consumo ainda é ponto fraco. O consumo das famílias foi responsável por apenas 34% do PIB, e o consumo total não chegou a 50% do PIB em 2007. Essa fraqueza, porém, é institucional e não poderá ser corrigida facilmente no curto prazo. Então, com a economia doméstica basicamente segura, existe algo que a China possa fazer para ajudar a economia mundial? Se o país mantiver seu crescimento real em 8% por ano nos próximos dois anos, os mercados emergentes talvez possam crescer 4% ao ano. Isso pode impedir a economia mundial de cair em recessão. A impressão que se tem é que a China poderá ter o papel de "âncora do crescimento".

Capacidade limitada
Não se deve, entretanto, esperar que ela faça muito mais que isso. A ação chinesa para a estabilização financeira mundial, por exemplo, é limitada. A China teve pouca participação nos mercados globais de derivativos e não tem muitos títulos de crédito podres a limpar, nem bancos a resgatar. Talvez a China devesse usar suas reservas de US$ 1,9 trilhão para comprar mais dívida estrangeira, mas esse enorme pool de ativos já está carregado de títulos soberanos de outros países.
É improvável que a China esteja em condições de exercer papel central na reforma do sistema financeiro e monetário global em 2009, porque ainda não liberalizou plenamente suas contas de capital e seu sistema financeiro. Por isso, Pequim preferiu ser coadjuvante nas questões ligadas ao controle de riscos e à regulamentação. Mas é provável que a China aumente sua participação em uma questão: o status do dólar como moeda global de reserva. O país foi criticado no passado por não valorizar sua moeda tanto quanto os EUA exigiam.
A China talvez aprecie emendas ao mandado do FMI ou o acréscimo, na agenda do fundo, de um "capítulo" que discipline a disponibilidade de moeda dos EUA e o acúmulo de sua dívida. Na visão da China, não basta exigir que outros se adaptem à desvalorização do dólar. Com renda per capita de US$ 2.500 e 35% da força de trabalho ainda na agricultura, os problemas domésticos chineses ainda são enormes. Assim, o desenvolvimento vai continuar a ser sua maior prioridade.
A boa notícia é que a China reconhece quanto se beneficiou da abertura dos últimos 30 anos. Não há mais volta em seu caminho rumo ao envolvimento pleno no mercado global. O verdadeiro desafio da China será encontrar maneiras de lidar com o crescente protecionismo global, à medida que a crise financeira e a recessão onerarem cada vez mais a fundo seus principais mercados externos.

FAN GANG é professor de Economia na Universidade de Pequim e na Academia Chinesa de Ciências Sociais, além de diretor do Instituto Nacional de Pesquisas Econômicas da Fundação de Reforma da China. Este artigo foi distribuído pelo PROJECT SYNDICATE
Tradução de CLARA ALLAIN



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