São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 2006

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AMÉRICA LATINA

Cerimônias de posse de Evo Morales começaram ontem, em ritual religioso com cerca de 50 mil pessoas

Bolívia terá hoje 1º presidente indígena

Alan Marques/Folha Imagem
Presidente eleito da Bolívia, Evo Morales (dir.), participa de cerimônia indígena de posse, em Tiwanaku, a 70 km da capital do país


FABIANO MAISONNAVE
PEDRO DIAS LEITE
ENVIADOS ESPECIAIS A TIWANAKU

Numa cerimônia marcada por rituais indígenas e slogans de esquerda, Evo Morales deu início ontem aos dois dias de comemorações que marcam a sua chegada à Presidência da Bolívia. A posse oficial acontece hoje, em La Paz, com a presença de 11 chefes de Estado, entre eles o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Ao menos 50 mil pessoas de todas as partes do país chegaram desde a madrugada às isoladas ruínas de Tiwanaku (70 km de La Paz), um importante centro religioso pré-incaico, para assistir à solenidade espiritual.
Na estrada, centenas de vans, microônibus e até caminhões congestionavam o caminho, adornados com as bandeiras whipalas aimarás, a etnia de Morales, quadriculadas e coloridas, e do seu partido, o MAS (Movimento ao Socialismo).
Embora quase todos os presentes fossem indígenas, os grupos de áreas rurais se diferenciavam pelas coloridas roupas típicas, sempre distintas entre si, enquanto os vindos das cidades usavam roupas comuns e traziam faixas de sindicatos. Por todos os lados ambulantes vendiam comida e biografias de Morales, a um boliviano (R$ 0,40).
O Exército e a polícia faziam apenas a coordenação das diversas entradas e do trânsito. Para controlar a multidão, havia guardas aimarás da região, que, uniformizados com um poncho vermelho, formaram um cordão humano de isolamento, armados de largos chicotes.
"Esse chicote é para tirar os maus e deixar apenas os bons", disse, brincando, Pascoal Quispe, enquanto mostrava como usá-lo.
Entre as diversas bandeiras empunhadas -havia até uma do Iraque-, a que mais chamou a atenção foi a chilena. Algo impensável em outubro de 2003, quando, nos protestos que derrubaram o presidente Gonzalo Sánchez de Lozada, manifestantes chegaram a queimar a bandeira e atacar empresas chilenas.
A Bolívia reclama o acesso ao mar perdido para o país vizinho durante um conflito no final do século 19.

Chegada de Evo
Morales chegou ao local da cerimônia às 13h locais. Apareceu no alto de um morro à esquerda de onde a multidão se aglomerava. Ali, ganhou a bênção da Pachamama (mãe Terra). Estava vestido com um poncho vermelho de alpaca e trazia à cabeça um "unco", espécie de gorro dourado de quatro pontas, em alusão às regiões do Estado pré-incaico. Nos pés, uma sandália de tiras também vermelhas. Ao final, recebeu uma espécie de cetro, símbolo do poder recém-adquirido.
Em seguida, desceu até as ruínas. No trajeto, aparentando muita calma, acenou para fotógrafos e turistas que pediam que olhasse para suas máquinas e cumprimentou quem estivesse mais próximo. E, do último degrau das escadarias do templo, fez um emocionado discurso de cerca de 20 minutos.
"Hoje começa o novo ano para os povos originários do mundo. Uma nova vida que buscamos de igualdade, justiça. Uma nova era, um novo milênio para todos os povos do mundo a partir daqui, de Tiwanaku, da Bolívia. E só com a força do povo, com a unidade do povo, vamos acabar com o Estado colonial e com o modelo neoliberal", disse Morales, seguido de aplausos e gritos.
Sobre os primeiros passos do novo governo, Morales disse que priorizará a convocação da Assembléia Constituinte. "Os povos originais reclamam refundar a Bolívia mediante a nova Assembléia Constituinte. Até o final de março deve ser aprovada a lei convocatória da nova assembléia", prometeu.

Ausência
A ausência mais sentida foi a do líder cubano, Fidel Castro, que não sai de seu país há vários meses. Apesar da falta do ditador, Morales citou em seu discurso o companheiro mais famoso de Fidel e disse que vai retomar "a luta do Che", em referência a Ernesto Che Guevara, morto justamente na Bolívia, em 1967.
Depois de encerrado o discurso, Morales recebeu presentes de representantes indígenas de vários países latino-americanos -o Brasil foi um dos poucos países que não enviaram ninguém.
O tempo instável só apresentou sol forte durante a presença de Morales. Antes, uma chuva fina e fria castigou a multidão. Depois, uma forte tempestade de granizo desabou sobre Tiwanaku.
Morales conquistou a Presidência ainda no primeiro turno, em 18 de dezembro, quando conseguiu 53,7% dos votos válidos. Foi o primeiro candidato a ganhar sem a necessidade de um segundo turno desde a redemocratização, no início dos anos 1980. O mandato presidencial na Bolívia é de cinco anos, sem reeleição.

Números recordes
A expectativa em torno da posse tem sido considerada sem precedentes na Bolívia. Hoje, as autoridades esperam 200 mil pessoas na histórica praça San Francisco. Outro recorde, segundo a Chancelaria, é o número de chefes de Estado -o máximo havia sido apenas cinco, contra os 11 que confirmaram presença.
Além de Lula, confirmaram a presença Néstor Kirchner (Argentina), Hugo Chávez (Venezuela) e Ricardo Lagos (Chile). Mesmo com a participação sempre histriônica de Chávez e a poucas semanas de deixar a Presidência, Lagos é quem tem mais causado expectativa entre os bolivianos -é a primeira vez que um presidente chileno comparece à posse de um colega boliviano desde a ruptura das relações diplomáticas, em 1979.


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