São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2004

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Campanha expõe hegemonia presidencial de Yale

AMITY SHLAES
DO "FINANCIAL TIMES"

John Kerry, Howard Dean, George W. Bush e Joe Lieberman têm algo em comum, e não é apenas o fato de terem passado o mês de janeiro em campanha pela Presidência americana. Todos eles estudaram em Yale.
A disputa entre George Bush pai e Bill Clinton, em 1992, também foi um embate de Yale versus Yale. Já faz uma década e meia que o Salão Oval é ocupado por pessoas formadas em Yale.
Observadores argumentam que a hegemonia de Yale revela um fato vergonhoso: que os EUA são regidos por dinastias endinheiradas. O fato de vários dos políticos (ambos os Bushes, John Kerry) também terem pertencido à associação de alunos de Yale Skull and Bones (caveira e ossos) parece confirmar a afirmação de exclusividade.
Mas também poderíamos argumentar o contrário: que a hegemonia atual de Yale vem comprovar a importância de se adotar uma política para aceitar alunos baseada no mérito.

Fases de mediocridade
Esta é uma história que começa com a velha Yale, fundada em 1701. Aquela Yale teve períodos iluminados e formou pessoas ilustres. Mas também passou por fases prolongadas de mediocridade. Comparada à Universidade de Chicago no pós-Segunda Guerra Mundial, por exemplo, ou à Universidade de Wisconsin antes dela, Yale não era muito instigante. O único presidente saído de Yale durante um século e meio foi William Howard Taft (1909-13), lembrado como um sujeito tão corpulento que teria ficado entalado numa banheira da Casa Branca.
O problema de Yale era que se preocupava mais com classe do que com qualidade. A universidade excluía todas as mulheres qualificadas, quase todos os negros qualificados, muitos judeus qualificados e alguns católicos qualificados. Rejeitava de maneira rotineira, por princípio, os alunos saídos de escolas públicas.
Nos anos 60, porém, dois reitores sucessivos da universidade, A. Whitney Griswold e Kingman Brewster, se propuseram a criar uma nova Yale. Como escreve Dan Oren em seu livro "Joining the Club" (entrando para o clube), os dois contrataram Arthur Howe e R. Inslee Clark para cuidar da admissão de alunos, e estes afirmaram que, se quisesse atingir a grandeza, Yale teria de abrir mais suas portas. Em 1964, o número de calouros vindos de escolas públicas, que em 1950 tinha sido de apenas 36%, já chegava a 56% do total.
No início dos anos 70, Yale se abriu para o ingresso das primeiras mulheres. As novas calouras se mostravam mais ágeis e se esforçavam mais do que os estudantes mais velhos de Yale. A política de admissões passou a não levar em conta a carência financeira: a universidade escolhia os estudantes primeiro, depois calculava quanto apoio financeiro eles iriam precisar e, em seguida, lhes fornecia a maior parte.
Hoje em dia a impressão que se tem é que essa mudança foi inevitável, desde o início. Mas não foi. "Deixe-me entender direito", disse um membro da Yale Corporation a Clark. "Você está autorizando a entrada de alunos de uma classe inteiramente diferente daquela à qual estamos acostumados. Você os está deixando entrar para uma finalidade diferente da de formar lideranças."
Clark insistia que admitir talentos e criar líderes eram a mesma coisa. O executivo discordou. "Estamos falando em judeus e gente saída de escolas públicas. Olhe à sua volta. Estes são os líderes da América. Não há judeus aqui. Não há ninguém aqui que tenha estudado em escola pública."
Nas décadas de 60 e 70, eram estudantes de Yale que chamavam a atenção do país, fazendo passeatas de protesto. Entretanto, olhando em retrospectiva, a novidade ainda maior do que essa foi a revolução interna pela qual a universidade passou. "Foi uma mudança para uma meritocracia, tanto para os estudantes quanto para o corpo docente", recorda Donald Kagan, historiador e especialista nos clássicos formado em Yale. A nova Yale fazia tudo parecer possível, e isso, por sua vez, tornava a universidade enormemente atraente. Esse ambiente inspirou novos alunos de Yale como o senador Joe Lieberman, que entrou para a universidade saído de um colégio público de Stamford, Connecticut.
Na nova Yale, os filhos de famílias ricas tradicionais, como John Kerry (Yale, 1966) e Howard Dean (Yale, 1971), eram obrigados a competir com estudantes de passado muito diferente. Quanto a George Walker Bush (Yale, 1968), ele ao mesmo tempo fez parte da velha Yale e, na condição de caubói populista, a rejeitou.
Para os alunos de origem privilegiada, a nova política gerava dúvidas que seus antecessores não precisaram levar em conta, resultando em homens e mulheres complicados, reflexivos -em outras palavras, líderes.
Entretanto, se dermos atenção excessiva a Yale, perderemos de vista o mais importante. As conseqüências positivas da ênfase às oportunidades que marcou os anos 60 são visíveis em todo o país. O que esta campanha presidencial formada quase exclusivamente por egressos de Yale traz à tona é o efeito duradouro de uma mudança benéfica e distinta de política, mesmo quando, lamentavelmente, essa mudança demora a ser adotada.


Tradução de Clara Allain


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