São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2004

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ELEIÇÃO NOS EUA

Livro com diários do pré-candidato democrata durante a guerra mostra como se definiram suas crenças políticas

Formação de Kerry é marcada pelo Vietnã

CÍNTIA CARDOSO
DE NOVA YORK

Nas trincheiras da disputa para a Presidência dos EUA neste ano, o legado da Guerra do Vietnã surge como tema recorrente das campanhas eleitorais de George W. Bush e do pré-candidato democrata John Kerry.
A seu favor, Kerry tem a aura de ex-combatente condecorado no conflito, enquanto Bush se vê bombardeado por acusações de que não teria cumprido regularmente as suas obrigações militares na Guarda Nacional durante parte do período da guerra.
Lançado recentemente pelo historiador americano Douglas Brinkley, o livro "Tour of Duty: John Kerry and the Vietnam War" (algo como jornada de dever: John Kerry e a Guerra do Vietnã) divulga pela primeira vez os diários pessoais de Kerry e as cartas enviadas para a família.
Ao longo de aproximadamente 500 páginas, a obra traz crônicas e algumas poesias que relatam os horrores da guerra -incêndios de aldeias, a morte de um amigo próximo e a permanente tensão das tropas americanas- sob o olhar do futuro senador. Num dos momentos mais chocantes, o diário de Kerry revela que, por um erro de avaliação do seu pelotão, uma criança foi assassinada.
Esse tipo de experiência é, na avaliação de Brinkley, um elemento determinante para a formação política do pré-candidato à Presidência dos EUA.
"A pessoa pode sair do Vietnã, pode abandonar o uniforme, mas o Vietnã vai continuar presente nela como uma ameba. O Vietnã é parte do que Kerry é hoje. As lembranças nunca o deixaram. Isso faz com que ele pense que a guerra é sempre o último recurso a ser usado", disse à Folha.
Segundo Brinkley, a escolha de Kerry para ser o tema central do seu livro foi um acaso. "Comecei o projeto há 18 meses. Queria fazer um livro sobre a Marinha dos EUA durante a Guerra do Vietnã", afirmou. "A maioria dos veteranos escreveu um livro de memórias ou pelo menos um artigo. Kerry nunca tinha escrito nada. Soube que ele tinha um diário e entrei em contato com ele."
O autor diz que teve de se debruçar sobre pilhas de cartas e notas pessoais que o impressionaram. "É difícil achar um veterano que tenha escrito com tanta paixão e com tantos detalhes sobre as suas angústias existenciais."
Mas o livro, que aparece no "New York Times" entre os 20 mais vendidos, quase foi engavetado. O historiador contou que o editor ficou "cético" e mostrou pouco entusiasmo com um livro baseado inteiramente nas memórias de "um senador democrata".

Lembrança viva
Brinkley diz ainda que essa experiência militar forjou em Kerry o que tem sido uma das tônicas do seu discurso sobre política externa: a ênfase no multilateralismo. "O Vietnã também ensinou a Kerry como é importante que um país como os EUA não ajam sozinhos e procurem ter aliados."
Kerry alistou-se na Marinha americana em fevereiro de 1966, alguns meses antes de completar a sua graduação na Universidade Yale. Depois de um período de treinamento em ações no Pacífico, foi enviado para servir em barcos de patrulha militares em rios do Vietnã.
Ao longo de dois anos de serviços, ele foi condecorado por bravura e por ferimentos sofridos em batalhas. Ao ser dispensado, em 1970, tornou-se um dos maiores ativistas contra a guerra.
Esse perfil de herói de guerra tem sido um trunfo do democrata com os veteranos, uma parcela até então pouco explorada por candidatos a presidente.
Segundo estatísticas do governo, há 26 milhões de veteranos. Um terço desse total é formado por ex-combatentes do Vietnã.
Em sua campanha, Kerry promete adotar uma conduta "de veterano para veterano", caso seja eleito. Para Brinkley, esse é um apelo forte para essa fatia marginalizada da sociedade. "O Vietnã foi uma guerra imoral. Há um estigma em ser um veterano do Vietnã. Enfatizo no meu livro que esses jovens só seguiram ordens. Na minha avaliação, Kerry fez as duas coisas de forma correta. Ele serviu honradamente às Forças Armadas. Mas, quando voltou para os EUA, teve a coragem de dizer que a guerra foi um erro."
No entanto a popularidade do senador de Massachusetts entre os ex-combatentes não é consensual. Alguns veteranos consideram sua atitude antibelicista como uma afronta à honra e como um ato de antipatriotismo.
O ex-boina-verde Ted Sampley criou um site intitulado Veteranos do Vietnã contra Kerry (www.usvetdsp.com), com o objetivo de criticar seu comportamento após ter retornado do conflito.
Nas últimas semanas, começou a circular na mídia americana uma foto na qual Kerry aparece sentado próximo à atriz Jane Fonda, um dos ícones do movimento pacifista, num comício contra a guerra nos anos 70.
O jornal inglês "The Guardian" revelou que, na verdade, essa foto é uma fraude, resultado da montagem de duas imagens diferentes. A rapidez com que a foto se disseminou, no entanto, mostra como está ativa a rede de veteranos contrários a Kerry.
Para Brinkley, a relevância do debate sobre o Vietnã não se restringe à campanha eleitoral. "É importante não esquecer o passado. Os dilemas que enfrentamos no Vietnã, o problema de querer impor uma democracia a outro país, a volta dos corpos dos americanos em sacos plásticos... Todos esses são temas que revisitamos hoje. Há um nítido paralelo entre o Vietnã e o Iraque."


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