São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2004

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IMPÉRIO NO DIVÃ

Revelação da filosofia americana diz que país tem dificuldade para compreender quem são seus inimigos

EUA não sabem ter ódio, afirma ensaísta

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Lee Harris, 55, é empresário numa cidadezinha próxima a Atlanta, Estado da Geórgia. Escreveu contos de ficção científica e ensaios sobre política.
Seu último livro, "Civilization and Its Enemies, the Next Stage of History" (civilização e seus inimigos, o próximo estágio da história), lançado neste mês, foi comemorado por publicações conservadoras como a "Policy Review", do Instituto Hoover, como uma das revelações da filosofia americana após a Guerra Fria.
Ele diz em seu livro que os EUA se enfraquecem na medida em que não conseguem definir o que vem a ser um inimigo, no caso o extremismo islâmico. A própria idéia de inimigo é problemática na mentalidade do americano.
Para ele, o 11 de Setembro foi uma oportunidade não plenamente aproveitada de reverter essa visão liberal e generosa.
Eis os principais trechos de sua entrevista à Folha.
 

Folha - O sr. acredita que os EUA não consigam imaginar o que é um inimigo, como o do 11 de Setembro. Como mudar isso?
Lee Harris -
O que tenho escrito é que, quando se tem uma civilização democrática e liberal, é também preciso que estejamos prontos a defendê-la. Uma civilização liberal não sai do nada. Ela é construída por meio de um trabalho longo e árduo. Muitos americanos perderam a noção de o quanto foi preciso trabalhar para chegarmos a uma sociedade livre.

Folha - Como evitar que, ao identificar o verdadeiro inimigo, corra-se o risco de encontrá-lo em cada esquina? As liberdades civis podem ser machucadas?
Harris -
Isso pode ocorrer. O problema na identificação do inimigo está na possibilidade de ele ser usado de modo radicalmente incorreto. O inimigo é um conceito que devemos necessariamente instituir. Mas precisamos ao mesmo tempo evitar que o inimigo seja objeto de uma fantasia, que ele seja onipresente. Isso levaria ao risco de também destruirmos a civilização. Ela pode ser destruída pelos que a defendem mal.

Folha - Um exemplo?
Harris -
O precedente mais caricatural e trágico é o de Adolf Hitler, que acreditava estar protegendo a civilização alemã contra o bolchevismo e acabou atingindo em cheio valores fundamentais desta mesma civilização. Hitler foi um exemplo clássico de reação desproporcional contra um inimigo cuja dimensão ele e seu establishment imaginaram.

Folha - O atual governo dos EUA também corre o risco de cair nessa reação desproporcional?
Harris -
É uma questão muito importante. Um dos problemas com o 11 de Setembro está no fato de as pessoas não saberem se algo parecido voltará a acontecer. A meu ver não haverá um novo 11 de Setembro, o que coloca no horizonte a hipótese de as reações serem desproporcionais. Creio, no entanto, que foi muito difícil para o presidente George W. Bush saber se algo igualmente trágico iria ou não se repetir.

Folha - Mas não há ameaça real às liberdades e às leis internacionais?
Harris -
Não creio que as liberdades civis corram algum risco nos EUA. Os diagnósticos em sentido contrário são claramente exagerados. Continuamos a ser um povo extremamente livre, com adversários de Bush vendendo seus livros como pãezinhos quentes.
Em termos de leis internacionais, não foi possível costurar um consenso. O 11 de Setembro foi algo inédito. Nada parecido havia acontecido antes. É preciso levar em conta esse ineditismo para podermos, no plano internacional, reagir de modo coordenado. Não creio, porém, que o governo Bush tenha feito o necessário para que essa aliança internacional contra o imprevisível se costurasse de modo consistente.

Folha - Alguns liberais, como Noam Chomsky, dizem que é preciso entender o que pensam os terroristas, porque eles têm posições muito nítidas sobre o apoio incondicional dos EUA a Israel.
Harris -
Nunca neguei que nos países árabes haja descontentamento pela política americana no Oriente Médio. Mas o 11 de Setembro significou trazer luto e sofrimento à nação cuja mentalidade eles alegadamente pretendiam mudar. Ou seja, não foi um ato político destinado ao convencimento. Foi algo que veio do nada e que não se repetiu. Chomsky diz basicamente que, caso fosse um terrorista, teria feito aquilo que Bin Laden fez. Mas os terroristas não têm essa motivação.

Folha - A idéia do inimigo islâmico está ausente das primárias democratas. Será que o 11 de Setembro não "esfriou", deixou de ser atualidade para virar história?
Harris -
Neste momento preciso há um confronto político, e o adversário está no partido do lado oposto. De qualquer modo, os republicanos dizem estar numa guerra prolongada. Eu tenho objeções à idéia de guerra. Numa guerra há uma posição de simetria entre os lados. Assume-se que o inimigo se comportará da mesma forma que você. O 11 de Setembro foi singular. Os terroristas não têm uma racionalidade e uma capacidade de organização semelhantes às nossas.

Folha - Democratas e republicanos reagiriam da mesma forma para evitar um novo 11 de Setembro?
Harris -
Não estou certo. O presidente Clinton, um democrata, reagiu ao bombardeio de embaixadas americanas na África por meio de lançamentos de mísseis, sem se importar quem esses mísseis atingiriam. Ele foi mais irracional que o republicano Bush. Se os democratas voltarem à Casa Branca, eles enxergarão a equação de um modo diferente.

Folha - Em quem o sr. votará para presidente?
Harris -
Ainda não decidi. Eu tradicionalmente voto no candidato democrata. Mas tenho apoiado George W. Bush, com base na empatia por sua posição. Se o 11 de Setembro tivesse sido o início de uma guerra de verdade, o presidente saberia o que fazer. Mas o episódio, repito, era inédito e não voltou a se repetir. E se voltasse a acontecer? O presidente será responsabilizado, seja ele democrata ou republicano.

Folha - Ainda quanto à idéia de inimigo. Durante o macarthismo, a imagem da democracia americana era em parte construída com base no contraste com os comunistas.
Harris -
Os americanos não gostam da idéia de terem um inimigo. Quando o presidente Woodrow Wilson entrou na Primeira Guerra, ele insistia que não estávamos em guerra contra o povo alemão, mas apenas contra seus autocráticos dirigentes. Com o presidente Franklin Roosevelt, na Segunda Guerra, o raciocínio era o mesmo. Isso também vale para o comunismo. Jamais existiu ódio dos americanos pelo povo russo. Não sabemos como odiar, o que é de certo modo um dos segredos para mantermos uma sociedade tão diversificada.

Folha - Qual seria a conseqüência desse traço cultural?
Harris -
Devemos reconhecer que nossa forma de pensar não é compartilhada por culturas que nos enxergam como inimigos e sonham em nos matar pelas costas. Precisamos reconhecer que não é possível com relação a eles utilizar comportamentos e raciocínios baseados na eqüidade.

Folha - Foi por isso que após o 11 de Setembro os americanos não passaram a ver os muçulmanos da forma com que o senador Joseph McCarthy via os comunistas nos anos 50?
Harris -
Lembremos do que ocorreu durante a Segunda Guerra. Japoneses residentes nos Estados Unidos foram confinados. Franklin Roosevelt concordou. A Suprema Corte também. Hoje seria inimaginável que algo semelhante ocorresse. Um dos pontos que abordo em meu livro é o fato de, nos últimos 30 anos, meu país ter atravessado uma imensa revolução liberal que trouxe novos padrões de tolerância.

Folha - Não haveria hoje a sensação de que os Estados Unidos se tornaram arrogantes?
Harris -
O americano médio anda meio desconcertado. Se os europeus precisam de forças na Bósnia, tropas norte-americanas são enviadas. Mas, quando os Estados Unidos precisam do resto do mundo, essa ajuda não vem. É como se fôssemos, na cabeça do americano médio, um posto policial que só pode atuar quando telefonamos para ele. Meus vizinhos de subúrbio de Atlanta seriam capazes de enviar seus filhos para o lado oposto do mundo porque acreditam que isso seria útil para as populações locais.

Folha - Mas seria mera incompreensão essa sucessão tremenda de atentados contra as forças americanas no Iraque?
Harris -
Há grupos que reagirão com violência e terrorismo apenas para destruir a idéia de legitimidade e tirar proveito do caos que resultará. É o que o partido nazista fez, por exemplo, na Alemanha da República de Weimar. Não creio que o Iraque seja um exemplo potencial de democracia. Tenho sobre aquele país muitas dúvidas. A democracia pode fertilizar um terreno para que fanáticos construam seus projetos contrários à própria democracia.


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