São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2004

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AMÉRICA LATINA

Pressão crescente de credores externos leva presidente a tentar transformar a renegociação em causa nacional

Kirchner mobiliza Argentina contra dívida

CAROLINA VILA-NOVA
DE BUENOS AIRES

O presidente da Argentina, Néstor Kirchner, deflagrou um movimento para obter respaldo popular e político com o objetivo de fazer frente à pressão externa para que o governo modifique sua proposta de reestruturação da dívida pública, em moratória desde dezembro de 2001.
A questão já se tornou uma obsessão nas aparições públicas do presidente e praticamente substituiu os temas predominantes no discurso oficial até agora, como direitos humanos e "limpeza geral" nas instituições.
A estratégia ganhou impulso com o aperto do G8 (grupo dos sete países mais ricos do mundo, mais a Rússia) e do Fundo Monetário Internacional, que não aceitam o desconto de 75% no valor nominal da dívida, de US$ 88 bilhões, proposto por Kirchner.
Essa pressão ganhou contornos de tragédia quando a Justiça americana bloqueou bens argentinos. "Se querem apertar, que apertem", reagiu Kirchner. "Aqui está o povo argentino para construir um novo destino", discursou num bairro miserável de Jujuy. "Sei que um país mais justo é possível, mas sozinho é impossível", afirmou, pedindo aos argentinos "força espiritual para não quebrarmos nas grandes batalhas".
Coube ao chefe-de-gabinete, Alberto Fernández, traduzir: "Os argentinos devemos fazer da dívida uma causa nacional porque estamos falando não de resolver o problema atual, mas de resolver o futuro de várias gerações".

Respaldo
Pesquisas de opinião pública apontam que a estratégia vem funcionando. Em levantamento da consultoria OPSM, 66% dos entrevistados opinaram que a questão da dívida "é um problema de todos os argentinos", contra 32,5% que acham que "é um problema do governo".
Outros 55,4% afirmaram que, mesmo com dificuldades nos mercados, o governo deveria se manter "inflexível" ou "pouco flexível" na negociação. A pesquisa ouviu 1.100 pessoas em todo o país entre 10 e 13 de fevereiro.
"O tema da negociação com os credores está no centro da atenção do povo", afirmou Enrique Zuleta Puceiro, da OPSM.
Ele ressaltou que, na semana dos bloqueios, enquanto a Bolsa de Valores argentina caía pela primeira vez em dez meses, a imagem positiva de Kirchner subiu de 77% para mais de 80%. "Isso acontece cada vez que ele aparece no centro da cena mostrando firmeza e integridade."
Estimulados pelas pesquisas, diversos setores sociais, políticos e empresariais vêm respondendo aos apelos do presidente.
Felipe Solá, governador da Província de Buenos Aires, chegou a propor uma marcha na capital de apoio às negociações do governo.
"Cremos nesses compromissos ante a pressão asfixiante a que é submetido o país pelos credores", disse a Coordenação Interempresarial Argentina.
Grupos piqueteiros, de trabalhadores desempregados, também endossaram a causa, fazendo "embargos simbólicos" como forma de protesto.
Mas alguns analistas alertam sobre os riscos envolvidos na estratégia de Kirchner, entre eles a impossibilidade de voltar atrás caso seja necessário. Eles afirmam que poucas vezes os argentinos embarcaram em um projeto político desse tipo e que nem sempre os resultados foram positivos.
"A tentativa de recuperar as Malvinas em 1982 também foi uma manipulação do nacionalismo patriótico com fins políticos, e algum risco desse tipo pode existir hoje", escreveu o analista político Rosendo Fraga.


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