São Paulo, domingo, 22 de fevereiro de 2004

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Discurso só tem efeito doméstico, afirma analista

DE BUENOS AIRES

Ao explorar a questão da dívida, o presidente argentino, Néstor Kirchner, está aproveitando uma grande oportunidade midiática para consolidar sua liderança política, além de tirar o foco de outras questões para as quais não tem resposta. A avaliação é do cientista político argentino Sergio Berensztein, da Universidade Torcuato di Tella. A seguir, trechos de sua entrevista à Folha. (CV)
 

Folha - Quais são os principais riscos políticos que Kirchner corre ao propor a questão da dívida como uma causa nacional?
Sergio Berensztein -
Há riscos limitados. Na verdade, isso é indiferente frente à negociação [com os credores]. Por outro lado, gera capital político doméstico porque lhe permite seguir aparecendo nos meios de comunicação com uma questão que é popular. E também lhe permite ganhar apoio interno do Partido Justicialista [peronista], porque fazer disso uma questão nacional não deixa espaço para matizes.
É uma maneira de fortalecer sua Presidência e de tirar o foco de outros líderes, sobretudo os provinciais ou os vinculados às velhas clivagens do PJ, como o menemismo, o duhaldismo [dos ex-presidentes Carlos Menem (1989-99) e Eduardo Duhalde (2002-03)]. Ninguém fala mais deles. Do ponto de vista da comunicação, a questão da dívida constitui uma enorme oportunidade que o presidente está de fato aproveitando.

Folha - O sr. crê que essa estratégia inviabilize a oposição?
Berensztein -
Não há oposição. A oposição está muito desagregada, muito debilitada, e isso a torna ainda menos palpável, eficaz, visível.
A esquerda e o centro-esquerda, que sempre foram opositores do peronismo, perderam visibilidade em dois aspectos: o dos direitos humanos, em que o presidente fez um enorme esforço para deslocar outros partidos; e o da dívida, que sempre foi uma reivindicação dessas forças.
O que resta são as forças de direita, que estão fragmentadas e que não podem se separar das políticas implementadas por Carlos Menem na década de 90. Esses setores mais ortodoxos não têm um espaço que lhes permita dar ressonância a seu discurso.
Dessa forma, o presidente continuará falando da dívida tanto quanto possa. E, ao falar da dívida, não fala de outras coisas, e isso, em política, é muito importante, porque assim ele mantém controle sobre a agenda.

Folha - De que outras coisas Kirchner não fala?
Berensztein -
Não fala das questões institucionais, das reformas de Estado, não diz como vai melhorar a gestão da coisa pública, a saúde, a educação, a segurança, que são temas que implicam naturalmente um esforço enorme do ponto de vista de gerenciamento e de planejamento estratégico.
Falando da dívida, em parte ele vai ganhando tempo, se é que alguém efetivamente está pensando em como fazer as outras coisas.


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