São Paulo, quinta-feira, 22 de agosto de 2002

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GUERRA SUJA

Papéis liberados pelos EUA revelam acordo secreto para "caçar e eliminar" opositores dos dois regimes militares

Ação anti-subversão uniu Brasil e Argentina

MARCIO AITH
DE WASHINGTON

MARCELO STAROBINAS
DA REDAÇÃO

Com o conhecimento dos EUA, os regimes militares no Brasil e na Argentina fizeram na década de 70 um acordo secreto para "caçar e eliminar" conjuntamente militantes de esquerda nos territórios dos dois países.
Essa é uma das revelações de documentos liberados pelo Departamento de Estado norte-americano sobre a "guerra suja" do regime militar argentino contra oposicionistas, na qual cerca de 15 mil pessoas morreram.
Os papéis trazem ainda detalhes da execução desse acordo, como uma sofisticada operação dos dois governos para prender Horacio Domingos Campiglia e Mónica Susana Pinus de Binstock, dois argentinos descendentes de italianos que desapareceram no Rio em março de 1980.
A liberação dos documentos decorreu de um pedido feito em 2000 por parentes das vítimas da ditadura militar na Argentina à então secretária de Estado dos EUA, Madeleine Albright. O pedido foi referendado pelo governo argentino.
São 4.677 telegramas e cartas (podem ser vistos no site http:// foia.state.gov) que cobrem o período de 1976 a 1983 e jogam luz sobre a prisão, tortura e assassinato, na Argentina, de militantes de várias nacionalidades e grupos.
Há referências à prisão de pelo menos três brasileiros em Buenos Aires: Maria Regina Marcondes Pinto, que teria sido extraditada pela Argentina ao Chile em razão de militância política de oposição em Santiago; Paulo Antonio de Paranaguá, filho do então embaixador brasileiro no Kuwait, e sua mulher, Maria Regina Jacob Pilla.
Embora com menos ênfase, os papéis mostram ainda novos ângulos do apoio dos EUA à repressão e o impacto negativo do terrorismo de esquerda nos negócios norte-americanos na região.
Diferentemente do material sobre as ditaduras no Chile, na Guatemala e em El Salvador, parcialmente liberados na década de 90, os papéis sobre a Argentina pertencem apenas ao Departamento de Estado. Não há uma única informação da CIA (agência central de inteligência), da Casa Branca e do Pentágono.

Kissinger
O documento mais marcante sobre a cooperação entre o Brasil e a Argentina é um telegrama enviado em 20 de agosto de 1976 pelo então secretário de Estado, Henry Kissinger, aos embaixadores norte-americanos em Santiago, Brasília, Buenos Aires, Montevidéu e Assunção.
Esse mesmo telegrama havia sido divulgado em 1999, mas o parágrafo mais revelador do documento de cinco páginas havia sido censurado, sob alegações de "segurança nacional".
Kissinger informa nesse parágrafo: "Uma confiável fonte brasileira descreveu um acordo Brasil-Argentina segundo o qual os dois países caçam e eliminam terroristas que tentam fugir da Argentina para o Brasil. Unidades militares brasileiras e argentinas já teriam operado conjuntamente e dentro das fronteiras do outro [país] quando necessário".
A revelação poderia ser comprometedora para Kissinger, pois reforça a tese de que Washington tinha conhecimento das atividades criminosas cometidas por regimes aliados dos EUA.
O juiz espanhol Baltasar Garzón -responsável por processo em seu país sobre as violações aos direitos humanos os regimes militares latino-americanos dos anos 70- vem tentando, até agora sem sucesso, interrogar Kissinger sobre o seu envolvimento com a Operação Condor -programa de cooperação entre os governos de exceção da região para combater opositores.

Sequestro no Rio de Janeiro
Uma das evidências da existência do acordo para "caçar" subversivos citado por Kissinger pode ser vista num dos documentos secretos liberados, datado de 7 de abril de 1980. Nele, diplomata americano revela detalhes de um episódio em que o governo do Brasil permitiu que uma unidade militar de elite argentina sequestrasse dois rebeldes Montoneros (guerrilha peronista) no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro.
Uma fonte do serviço de inteligência da Argentina conta que um dissidente capturado foi forçado a delatar seus companheiros Campiglia e Mónica Pinus de Binstock, integrantes do alto escalão do grupo rebelde argentino, que viviam no México.
O prisioneiro disse que os dois chegariam ao Brasil, em março de 1980, com passaportes falsos. "A inteligência militar argentina contatou seus parceiros da inteligência militar brasileira pedindo permissão para conduzir uma operação no Rio para capturar os dois montoneros que chegariam do México", afirma o documento.
"Os brasileiros deram permissão e um esquadrão especial de argentinos voou para o Rio, sob o comando operacional do tenente-coronel Roman, a bordo de um C130 da Força Aérea. Ambos os montoneros foram capturados com vida e levados à Argentina."
Para limpar os rastros que seriam deixados pela operação, os militares envolvidos utilizaram um casal de agentes argentinos. Eles se registraram num hotel do Rio com os mesmos documentos falsos que seriam usados por Binstok e Campiglia, dando a impressão ao grupo rebelde de que a dupla estava fora de perigo.
Os dois montoneros não foram mais encontrados. Em 2000, o juiz argentino Cláudio Bonadio, que investiga o seu desaparecimento, pediu ao STF (Supremo Tribunal Federal) informações do Brasil sobre a participação do regime militar no episódio. As autoridades brasileiras disseram não ter encontrado registro da ação ou provas em seus arquivos.


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