São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

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ARTIGO

Filme de Michael Moore abomina a história

DEMÉTRIO MAGNOLI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Fahrenheit 11 de Setembro", de Michael Moore, não é o que parece. Ele se apresenta como documentário, mas é um panfleto político com finalidade eleitoral. Aparece para o público como obra criativa independente, mas é um instrumento da campanha de John Kerry à Presidência. Tem sido recepcionado como exposição dos verdadeiros motivos da invasão do Iraque, mas é uma peça destinada a ocultar o núcleo da política externa americana.
A estrutura narrativa do filme revela pleno domínio da arte da manipulação. A tese política desenrola-se na parte inicial e conclui-se na parte final, sempre em ritmo de videoclipe. O miolo, mais lento, é constituído por dois fragmentos de documentário. O primeiro, curto, aborda a "guerra psicológica" interna conduzida pela administração Bush por meio da oscilação dos níveis de alerta antiterror. O segundo, mais longo, desvenda as conexões entre o recrutamento militar e o desemprego gerado pela desindustrialização no Meio-Oeste e capta os impactos da campanha no Iraque sobre os jovens soldados. Cada um desses trechos é uma oportunidade desperdiçada de elaboração de documentários geniais. Mas, do ponto de vista de Moore, não há desperdício, pois eles desempenham a função ideológica de conferir credibilidade documental ao restante da narrativa.
O resto é lixo, construído com a tesoura que seleciona, a cola que recontextualiza e a determinação de prender os fatos à camisa de força da tese política. O método, tão antigo como os filmes de propaganda de Stálin ou Hitler, beneficia-se das técnicas contemporâneas de edição.

A meta do filme é substituir a história pela trama da conspiração. Toda a operação narrativa monta o cenário para sugerir que os atentados do 11 de Setembro decorreram de um complô entre Osama bin Laden, os "príncipes do petróleo" e o próprio Bush

Mas o efeito de sedução tem suas raízes nos fragmentos de documentário do miolo.
No documentário, os fatos falam, exprimindo idéias diversas e dissonantes. Na propaganda, não há alteridade: os fatos são amordaçados e escravizados ao discurso unívoco do narrador. A narrativa de Moore elabora uma versão que esvazia a política externa americana de uma visão de mundo. No lugar disso, o que existe é a corrupção da família Bush, as negociatas entre essa camarilha e o complexo industrial-militar, as suas conexões com os "príncipes do petróleo" e a teia de interesses que une o presidente americano à família real saudita e ao chefe terrorista Osama bin Laden.
Moore confia nas lacunas de informação do grande público. Sua câmera mostra cenas dos campos de treinamento de Osama bin Laden financiados pela CIA no Afeganistão dos anos 80, mas omite a posterior declaração de guerra do chefe terrorista a Washington.
A narrativa insiste nos laços de negócios entre a família de Bin Laden e a monarquia saudita, mas se desvia da ruptura histórica entre o chefe terrorista e a Casa de Saud, que detonou a atual guerra entre o fundamentalismo e o regime saudita.
O filme abomina a história. A sua meta é substituí-la pela trama da conspiração. Toda a operação narrativa monta o cenário para sugerir que os atentados do 11 de Setembro decorreram de um complô entre Osama bin Laden, os "príncipes do petróleo" e o próprio Bush. Essa tese desvairada não é jamais exposta: emana, sob a forma de silenciosa insinuação, da lógica da montagem dos eventos.
Há uma nítida finalidade política no filme, muito maior que a declarada intenção de interferir na eleição presidencial. Trata-se de reinventar o passado recente, de modo a ajustá-lo à linha de política externa defendida por Kerry.
Os democratas proclamam aos quatro ventos a sua adesão a alguns princípios centrais da Doutrina Bush, como a noção da "guerra ao terror" e o pretenso direito à "guerra preventiva". Por isso, a crítica à administração Bush deve ocultar o eixo da sua política internacional, que é a Doutrina Bush. Eis a finalidade do filme de Moore. Não por acaso, a câmera da manipulação capta as cenas dos civis mortos no Iraque, mas esconde as vítimas inocentes dos bombardeios no Afeganistão, a guerra que os democratas acusam Bush de não travar com suficiente decisão.
As corporações de Hollywood recusaram o filme de Moore, em nome das suas relações com a Casa Branca. Erraram: além de gerar fortunas, o documentário é autoritário na forma e conservador no conteúdo.


Demétrio Magnoli, 45, doutor em geografia humana pela USP, é editor do periódico "Mundo - Geografia e Política Internacional" e pesquisador do Nadd-USP


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