São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2006

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Bebês africanos são preteridos em adoções internacionais

Polêmica sobre Madonna e sua tentativa de adotar bebê do Maláui acirra debate sobre desdém pelos órfãos da Aids no continente; China lidera adoções

LUCIANA COELHO
EDITORA-ADJUNTA DE MUNDO

Ao anunciar na última semana que aumentaria sua família com o pequeno David Banda, um menino de 13 meses nascido no Maláui, Madonna abriu uma controvérsia bem mais séria do que as colecionadas em seus tempos de "Material Girl" ou "Like a Virgin". A pergunta à tona é se a cantora, ao adotar uma criança aparentemente pisoteando trâmites legais, foi movida por um modismo egoísta ou pelo desejo de fazer uma boa ação redentora. Mas, sob a superfície, há outra mais importante (e difícil) de responder: seria essa uma solução para os centenas de milhares de órfãos que a Aids produz aos borbotões na África?
Em entrevista concedida à Folha em 2003, Ethan Kasptein, professor de desenvolvimento sustentável do Insead (França) e autor de artigos sobre a adoção e o tráfico de bebês, apontou a África como o próximo eixo do que chama de "rota dos bebês". Passados três anos, sua previsão ficou por se concretizar.
"A China, a Rússia e o Vietnã ainda são as principais fontes de bebês para adoção transnacional", disse o professor nesta semana ao ser indagado sobre sua previsão. "As adoções na África continuam sendo complicadas por conta dos círculos familiares mais amplos, da falta de uma legislação clara sobre o tema e, no caso dos países islâmicos, do veto a não-muçulmanos."
A professora de Harvard (EUA) Jacqueline Bhabha, especialista em infância e direitos humanos, aponta outro fator de peso: "Ainda há racismo". "Além disso, até recentemente havia um consenso de que bebês negros deveriam ser adotados por famílias negras, e assim por diante", diz Bhabha, uma das principais estudiosas do tráfico infantil e das adoções internacionais nos EUA.
Ainda pesam, lembra, questões culturais: na maioria dos países africanos a adoção por estrangeiros não é bem vista. "Ao passo que na China a adoção transnacional é bem aceita, em muitos países africanos, como Ruanda, há hostilidade em relação a casais brancos dispostos a levar os bebês para outros países", afirma ela.
Raras no Brasil, as adoções transnacionais são lugar-comum na Europa e sobretudo nos EUA, onde os trâmites são rigorosos e as crianças colocadas para adoção são geralmente as mais velhas, com problemas de saúde, deficiências físicas ou negras. Por injusto que seja, poucos as querem.
Fora do país, há mais bebês recém-nascidos e saudáveis colocados para a adoção, e prevalece a idéia de que o processo é mais rápido, explica Bhabha. Na China, por exemplo, os trâmites são claros e expeditos.
Mas nesse afã pela rapidez também se tropeça em armadilhas: na Guatemala, terceira no ranking de adoção transnacional compilado pelo Departamento de Estado norte-americano, ficaram célebres na última década os casos de compra de recém-nascidos. Em vários deles, os pais adotivos ignoravam que se tratasse de comércio e pagavam somas altas para que uma agência encontrasse um bebê pelas vias legais, muitas vezes comprado dos pais biológicos por US$ 50.

Estigma
Especialistas estimam entre 35 mil e 40 mil por ano as adoções transnacionais -cerca de 25 mil das quais têm como destino os EUA. Embora os números sejam dúbios por conta da legislação frouxa nesse campo, como alerta Bhabha, nos últimos 15 anos estima-se que as adoções tenham triplicado.
O impulso vem da soma da decisão de muitas mulheres de adiar ao máximo a gravidez à abertura da China e da Rússia para adoções internacionais. Ao mesmo tempo, explodiram na mídia os dramas das crianças abandonadas nesses países -sobretudo das meninas chinesas que sofrem sob a política do filho único de Pequim, ante a qual muitos, por razões sociais e econômicas, optam por um filho homem.
Mas enquanto a adoção de menininhas chinesas parece totalmente absorvida pela elite americana -em 2005, foram 7.906 vistos concedidos a bebês do país, 70% a mais que o segundo da lista, a Rússia-, sobre os bebês africanos ainda pairam dilemas. Se num passeio por um parque nova-iorquino saltará aos olhos a quantidade de casais brancos com chinesinhas nos braços, é quase zero a chance de ver um bebê negro no colo de pais americanos. Menor ainda é a probabilidade de esse bebê ser HIV positivo.
"A Aids é uma questão importante. Muita gente gasta muito dinheiro em exames médicos e tratamentos das crianças quando chega ao país porque quer ter certeza de que o filho vai sobreviver", diz Bhabha. "Além disso, muitas pessoas querem bebês que se pareçam com elas, não só pelo estigma mas também para que fique mais fácil para a criança."
Os asiáticos -primeiro os coreanos e vietnamitas, agora os chineses- escapam desse estigma exatamente por seus casos terem se tornado comuns, com a multiplicação de associações que reúnem filhos adotivos de origem asiática nos EUA.
Com tantos poréns, o primeiro país africano a figurar na lista americana é a Etiópia, apenas em 7º lugar -441 adoções legais-, seguida pela Libéria -12º, com 182 adoções- e a Nigéria -17º, com 65 adoções. (O Brasil, para se ter um parâmetro, aparece em 16º nessa lista, com 66 bebês adotados legalmente por casais americanos o ano passado.)
"Conta o fato de os pais buscarem uma adoção confiável, de quererem um bebê saudável e procurarem uma criança que será mais bem aceita em sua comunidade -um bebê africano no meio de uma comunidade branca ainda é raro", afirma a professora.
"E as pessoas morrem de medo da Aids. Elas simplesmente não querem adotar um bebê HIV positivo. Claro que na China a Aids também vem se tornando um problema crescente, mas, na percepção da maioria, a Aids é um problema dos bebês africanos."


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