São Paulo, segunda-feira, 23 de janeiro de 2006

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Evo Morales assume e lembra Guevara

Aizar Haudes/France Presse
Na cerimônia de posse, em La Paz, Evo Morales (esq.) assume o comando das Forças Armadas


FABIANO MAISONNAVE
ENVIADO ESPECIAL A LA PAZ

Com a mão esquerda levantada, o punho cerrado e vestindo um casaco de alpaca, o socialista indígena Evo Morales, 46, recebeu ontem a faixa presidencial da República da Bolívia para um mandato de cinco anos, prometendo "refundar o país" e pedindo "unidade para mudar a nossa história".
"Temos a obrigação de fazer uma grande rememoração sobre o momento indígena, sobre a situação da época colonial, da época republicana e da época do neoliberalismo", afirmou Morales, no início de seu discurso no Congresso, diante de parlamentares, convidados estrangeiros e representantes de movimentos sociais.
"De acordo com o Censo de 2001, somos 62,2% de aimarás, quéchuas e guaranis. Temos sido historicamente marginalizados, humilhados, odiados, desprezados, condenados à extinção. Essa é a nossa história. Esses povos jamais foram reconhecidos como seres humanos. Mas somos os donos absolutos desta nobre terra e de seus recursos naturais".
Dispensando o terno e a gravata, o novo presidente boliviano também quebrou o protocolo quando recebeu a faixa de seu vice-presidente, Álvaro García Linera. Em vez de fazer o sinal da cruz -na Bolívia, a religião católica é oficial-, Morales, com os olhos apertados para conter o choro, levantou o braço esquerdo com o punho fechado, num sinal de "liberação", como definiram seus correligionários. A mão direita repousou sobre o coração.
Antes de começar o discurso, Morales pediu um minuto de silêncio aos "mártires da libertação", entre eles, o argentino Che Guevara, morto na Bolívia em 1967, enquanto organizava uma guerrilha comunista. "Essa revolução cultural e democrática é parte da luta dos nossos antepassados. É a continuidade da luta de Tupac Katari. Essa luta e esse resultado são a continuidade da luta de Che Guevara", disse Morales, mantendo o costume de misturar ícones indígenas e da esquerda.
Buscando moderar o discurso, Morales agradeceu em seguida o apoio recebido por setores da classe média, intelectuais e empresários e disse sentir-se orgulhoso dessas pessoas.
Ao longo do discurso, Morales fez menção a Cuba (Fidel Castro foi representado por seu vice) e aos diversos presidentes da região convidados. E agradeceu ao "companheiro Lula". "Por me ensinar e me orientar", afirmou.
Sobre os Estados Unidos, mencionou a reunião que teve anteontem com o chefe da diplomacia americana para a América Latina, Tom Shannon, e exortou esse país a fazer "um acordo efetivo da luta contra o narcotráfico", mas fez a ressalva: "Que a cocaína não seja uma desculpa para que o governo dos EUA submeta nossos povos".
Além de Lula e Chávez, participaram outros nove chefes de Estado, entre eles, Néstor Kirchner (Argentina), Alejandro Toledo (Peru), Ricardo Lagos (Chile) e Álvaro Uribe (Colômbia).
Morales aproveitou a presença internacional para pedir o perdão da dívida externa do país.
"Pedimos, com todo o respeito, que perdoem essa dívida que tem feito tanto mal ao nosso país. Felizmente, alguns países, alguns governos, algumas instituições já demonstraram que perdoarão."
O FMI perdoou a dívida de US$ 200 milhões da Bolívia após a vitória do socialista. No final de 2003, o Brasil anulou uma dívida boliviana de US$ 52,5 milhões.

"República dos presidentes"
Após a posse no Congresso, Morales dirigiu-se ao Palácio Quemado (sede do governo), do outro lado da rua, na praça Murillo, centro de La Paz. Pouco depois, apareceu no balcão e cumprimentou a multidão ao lado de Chávez e do vice-presidente cubano, Carlos Lage.
As cerimônias prosseguiram no fim da tarde na praça San Francisco, a algumas centenas de metros do Palácio Quemado -distância percorrida a pé por Morales, para desespero dos policiais que tentavam conter a multidão.
No seu discurso diante de dezenas de milhares que o aguardavam, Morales, bem mais descontraído, anunciou que dividirá a residência oficial com o vice-presidente Álvaro García Linera, constitucionalmente o presidente do Congresso, e os presidentes do Senado, Santos Ramírez, e da Câmara, Edmundo Novillo.
"Essa casa presidencial não é apenas para Evo Morales. Se querem que eu more, que moremos os quatro", disse, sob risos da multidão. "Irmãs e irmãos, não entendam como piada. Não sou palhaço para que riam", brincou, sob mais risos. "É importante que, juntos, os quatros presidentes, desde ali, trabalhemos as 24 horas."
Morales cedeu o microfone ao vice cubano, Carlos Lage, que discursou por cinco minutos. "Não se pode dizer que Fidel não esteja aqui. Vejo Fidel em vocês, nesta vitória do povo boliviano."


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