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São Paulo, domingo, 23 de março de 2003

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"Para os EUA, não há paraíso na Terra"

PATRICK SABATIER
FRANÇOIS SERGENT
DO "LIBÉRATION"

O tradutor do pensamento de George W. Bush tornou-se um best seller. Robert Kagan, especialista em política externa, estratégia militar e defesa americana, é um dos inspiradores do ideário que vem guiando o governo dos EUA pelo território iraquiano.
Em livro recém-lançado, "Of Paradise and Power - America and Europe in the New World Order" (De Paraíso e Poder - A América e a Europa na Nova Ordem Mundial, ed. Knopf), Kagan materializa argumentos defendidos por ele desde 96 -e que formam, hoje, a visão dos partidários de uma hegemonia que não recua diante do recurso à força armada -pensamento que domina o meio de Bush.
A obra foi classificada pelo ex-secretário de Estado dos EUA Henry Kissinger (1973-1977) como um "tratado seminal", e Javier Solana -responsável pela política externa da União Européia- distribuiu um exemplar do escrito de Kagan a cada embaixador da Europa -com a recomendação de que fosse utilizado como um manual de instruções ao pensamento do presidente americano.
Formado em Yale e em Harvard e ex-redator dos discursos de George Schultz -que foi secretário de Estado de Ronald Reagan-, Kagan é diretor do Projeto de Liderança Americana na Fundação Carnegie de Paz Internacional, em Washington, cujo objetivo é definir o papel dos EUA como único superpoder mundial.
"Não é de hoje que a política americana objetiva preservar a hegemonia dos EUA no mundo. Dizê-lo é um sinal de franqueza", afirma. Leia as explicações de Kagan para a guerra no Iraque.
 

Pergunta - Por que George W. Bush decidiu lançar uma guerra contra o Iraque?
Robert Kagan -
O Iraque vem sendo um dos maiores problemas da política externa americana desde os anos 90. É importante lembrar que a primeira liderança americana a falar na derrubada de Saddam foi Madeleine Albright [secretária de Estado no governo Clinton]. Bill Clinton quase declarou a guerra em fevereiro de 98 e bombardeou o Iraque em dezembro desse ano. Mesmo sem o 11 de setembro, mais cedo ou mais tarde teria ocorrido um confronto com Saddam.
Trata-se, antes de mais nada, de um problema de segurança regional. Saddam foi agressor no passado, e nada indica que ele tenha abandonado suas ambições. Isso sem falar nas armas de destruição em massa que procurou estocar e que utilizou contra os iranianos e a sua própria população.
Não é uma cruzada. É claro que os EUA nunca lançaram uma ação militar sem proclamar que querem instituir um governo democrático no local. Não entramos na guerra em 1943 para democratizar a Alemanha e o Japão, mas foi isso que terminamos fazendo.
Não creio que o que move Bush principalmente seja o desejo de levar a democracia ao Oriente Médio. Seria difícil fazê-lo, e quem acredita que isso pode ser feito invadindo o Iraque peca por excesso de otimismo. Isto dito, nosso objetivo nessa região deve ser o de melhorar os regimes ou proteger as ditaduras? Se instalarmos um governo mais livre, isso exerceria um efeito sobre o conjunto do mundo árabe.

Pergunta - Mas o objetivo da resolução 1.441 é o desarmamento do Iraque.
Kagan -
Essa é uma concessão de Bush à comunidade internacional. Não sou porta-voz deles, mas ninguém da administração Bush jamais imaginou que o problema do Iraque pudesse ser resolvido apenas com o desarmamento.
A visão dominante é a que foi expressa pelo vice-presidente, Dick Cheney, em agosto de 2002: basicamente, as inspeções não podem funcionar. A resolução 1.441 foi um acordo de meio-termo entre os que acham que é preciso tirar Saddam do poder e os que desejam evitar a guerra.

Pergunta - Não há razões econômicas, como o petróleo?
Kagan -
Estou certo de que não é essa a razão da guerra. Existe petróleo no Iraque, é claro. Não se daria tanta atenção ao país se não houvesse. Mas não creio que a França ou os EUA ajam por causa do petróleo. Se isso fosse tudo o que os EUA quisessem, haveria um meio bem mais simples e menos caro de consegui-lo: suspender as sanções da ONU e normalizar as relações com Saddam.

Pergunta - Os europeus vêem na política de Bush a prova de uma ambição neo-imperialista dos EUA.
Kagan -
Vários dirigentes americanos pensam que, no mundo de hoje, essa supremacia é provavelmente a opção melhor que existe. Com todos os seus defeitos, os EUA são uma superpotência benévola. Os europeus não têm realmente medo deles. Se tivessem, encontrariam outras maneiras de se opor aos Estados Unidos, em vez de votar contra o país no Conselho de Segurança.

Pergunta - Do ponto de vista americano, a oposição dos europeus à guerra tem origem numa falta de coragem ou num ""nacionalismo europeu" antiamericano?
Kagan -
Os europeus vêem as ações dos EUA contra o Iraque como ameaça ao conceito deles de como deve ser a ordem internacional, no qual a única fonte de legitimidade quando se trata de empregar a força deve ser o Conselho de Segurança. Nem sempre eles tiveram esse conceito -no caso de Kosovo, intervieram sem nenhuma resolução da ONU.
Essa discussão é a principal questão em jogo no confronto atual. Os europeus são frutos de sua história -feita de guerras mundiais, mas também inspirada pela criação da União Européia, um milagre geopolítico.
No continente europeu, a força armada hoje já deixou de ser instrumento das relações internacionais. Enquanto isso, os EUA já provaram que se dispõem a recorrer à força, e com frequência -em sete ou oito ocasiões nos últimos 14 anos. Para os EUA, o recurso à força armada é legítimo.

Pergunta - Em seu livro, o sr. usa a metáfora dos EUA como xerife que impõe a lei e a ordem no mundo. Pode ele fazê-lo contra a vontade dos habitantes das aldeias?
Kagan -
Se o objetivo é disciplinar a potência global que é os EUA, de vinculá-la ao máximo ao sistema legal internacional do qual os europeus são defensores, existem maneiras mais inteligentes de fazê-lo. O risco, para os europeus, é que uma nova geração de líderes americanos passe a achar que o Conselho de Segurança não é um lugar frequentável, o que representaria uma derrota extrema para a visão européia de ordem internacional.

Pergunta - Um sistema unipolar tendo os EUA no centro e a força como instrumento pode ser estável?
Kagan -
Não sugeri que a força seja a resposta para todos os problemas. A força armada é um instrumento necessário, mas que não será empregado exceto em casos extremos.
Quanto ao mundo "unipolar", eu o vejo como bastante estável, sim. Qual seria a alternativa "multipolar"? A Europa não constitui um pólo, se levarmos a potência militar a sério. Não é possível decretar um mundo multipolar.
Os verdadeiros pólos alternativos são a China ou a Rússia no futuro. Prefiro, portanto, um mundo unipolar com os EUA. Ademais, a história já mostrou que os mundos multipolares não são mais estáveis do que os outros: basta olhar para os séculos 18, 19 ou 20 e suas guerras.

Pergunta - A força armada é realmente a resposta às ameaças do século 21? O que pode toda a sofisticação dos armamentos norte-americanos contra um Bin Laden?
Kagan -
Para começar, a percepção do que é a ameaça vem mudando a cada quatro anos desde que a Guerra Fria chegou ao fim. Falava-se em ameaça geoeconômica global. Depois, falava-se em conflitos étnicos. Hoje, o adversário é o terrorismo. Ninguém sabe, na realidade, quais serão as ameaças do futuro.
Não digo que o poderio militar seja a resposta para tudo. Mas, na maioria das regiões do mundo, o exercício do poder continua a ser o "modus operandi" principal. A Europa vive uma situação particular, pós-histórica e pós-moderna. Talvez seja a última fase da civilização humana. Existe uma dicotomia entre a Europa e o resto do mundo, e até mesmo entre a Europa e a América.
É Robert Cooper [diplomata britânico], atual conselheiro de Javier Solana, quem diz que a Europa vive num mundo pós-moderno, e a América, no mundo moderno. Acredito no progresso humano, mas apenas até certo ponto. É essa a divergência fundamental entre a Europa e a América. Em que estágio da evolução da história nos encontramos?
Os europeus são mais otimistas, devido à sua experiência multipolar na União Européia. Mas, para os EUA, que mantêm milhares de soldados no Japão e na Coréia e que garantem a segurança do Golfo, não existe paraíso na Terra. Os EUA vivem num mundo em que a força militar conta, sim.

Pergunta - Qual será o futuro dos laços transatlânticos?
Kagan -
Sou otimista, mais por nostalgia do que devido a qualquer análise. O Iraque é uma crise aguda que traz à tona grandes fissuras, mas ela não vai durar para sempre. Uma vez concluída a guerra, a poeira vai assentar. Há coisas demais que ligam os EUA à Europa -a economia, a filosofia política, a história... É evidente que não vejo nem os europeus nem os americanos mudando fundamentalmente sua percepção do mundo e sua concepção sobre o uso da força.
Por outro lado, haverá nos EUA uma reação contra a experiência dolorosa tida com os aliados americanos nos últimos meses. Quer isso seja feita pela administração atual ou pela próxima, haverá um esforço para melhorar as relações. Os americanos não gostam de se sentir totalmente fora de compasso com seus aliados.
Por outro lado, existe um sentimento de revolta sem precedentes, e que não compartilho, contra determinados aliados, especialmente a França. Os EUA vão buscar apaziguar os ânimos. A distância entre os dois países vai continuar, trata-se de aprender a administrá-la. A diplomacia é feita de arranjos desse tipo.


Tradução Clara Allain


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