UOL


São Paulo, domingo, 23 de março de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CHOQUE DE CIVILIZAÇÕES

Para o indiano Dilip Hiro, ataque ao Iraque deve gerar hostilidade aos EUA

Bush estimula terror, diz analista

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Apesar da proximidade do fim do regime de Saddam Hussein, os Estados Unidos têm pouco a comemorar. Tende a crescer o sentimento antiamericano no mundo islâmico, o que geraria hostilidade e terrorismo. Há um estímulo ao "confronto de civilizações".
É o que diz Dilip Hiro, indiano radicado em Londres, que publicou 24 livros sobre o Oriente Médio e relações políticas nas sociedades islâmicas nos últimos 30 anos . Ele é colaborador de jornais como o "Wall Street Journal" e o "Los Angeles Times" e de revistas como "The Nation". Leia a seguir trechos de sua entrevista à Folha.
 

Folha - A guerra será curta ou será longa, se é que tal previsão é possível pela reação das tropas iraquianas frente à coalizão?
Dilip Hiro -
Devemos antes de mais nada definir o que seria uma guerra "curta". Uma guerra de sete dias seria curta. Mas, ao se prolongar, ela criaria problemas para os EUA e o Reino Unido. Não se trata de uma "coalizão" ocidental empenhada na invasão do Iraque. "Coalizão" ocorre quando um conjunto de países contribuem com soldados ou mobilizam aviões e embarcações de guerra. Em 1991, na Guerra do Golfo, 28 países se engajaram ao lado dos EUA. Agora se engajaram apenas dois, o Reino Unido e a Austrália. Um governo que permite que aviões norte-americanos atravessem seu território não é, a rigor, membro da atual "coalizão".

Folha - A França se opõe a uma administração anglo-americana do Iraque após o término dos combates. Acredita que exista alguma chance de a comunidade internacional forçar que esse governo provisório esteja nas mãos da ONU?
Hiro -
Não acredito que a ONU se envolva na administração do Iraque. A França se opôs à invasão do Iraque e, por conta disso, sua posição não será levada em consideração em Washington. O fundamental é lembrarmos que americanos e britânicos violaram a Carta da ONU, que só permite que um país ataque militarmente um outro para se defender de uma agressão iminente.

Folha - Não haveria um estranho paradoxo no fato de alguns analistas acreditarem que a unidade iraquiana seria mais facilmente preservada se o governo fosse entregue a um general norte-americano e não a políticos exilados que fizeram oposição a Saddam?
Hiro -
A questão consiste em saber por quanto tempo o país será governado por esse general designado pelos EUA. E o que acontecerá quando esse general transferir o poder aos iraquianos.

Folha - Washington e Londres teriam preferido que Saddam fosse derrubado por um golpe antes que suas tropas chegassem a Bagdá, pois a sucessão do ditador seria assim menos traumática. Esse roteiro é ainda factível?
Hiro -
Os EUA tentaram muitas vezes derrubar Saddam por meio de um golpe. E não foi para instituir a democracia no Iraque, já que a idéia de democracia era vergonhosamente ignorada. Entre 1991 e 1999, a CIA estimulou golpes, sozinha ou atuando em conjunto com o M16 [serviço secreto britânico]. Nunca deu certo. Agora, para um golpe ser bem-sucedido, é preciso que existam conspiradores com poder em Bagdá, já que, nas Províncias, Saddam cedeu parte do poder para comandantes locais e chefes tribais.

Folha - O sr. escreveu recentemente que "George W. Bush poderá ter sucesso onde Osama bin Laden fracassou, ao provocar um choque de civilização entre o islã e o Ocidente caso chegue a invadir o Iraque". Quais as razões desse diagnóstico, e até que ponto ele seria desmentido pela maneira com que EUA e Reino Unido estão conduzindo a guerra?
Hiro -
Pesquisa feita em 44 países em dezembro último, pelo jornal "International Herald Tribune" e pelo Pew Research, demonstrou que, dos 14 países muçulmanos pesquisados, apenas em dois (Mali e Uzbequistão) a maioria das pessoas tinha dos EUA uma imagem positiva. No Egito, que tem sido um aliado de Washington desde 1972, apenas 6% tinham essa opinião. No Paquistão, aliado-chave dos EUA em seu combate à Al Qaeda, só 11%.
A invasão do Iraque, onde 95% da população é muçulmana, alimentará sentimentos contra os americanos no mundo islâmico. Nesses países, a percepção dominante é a de que o ataque ao Iraque foi um ataque a um país muçulmano, não uma simples operação destinada a derrubar Saddam.
Quem provavelmente está esfregando as mãos é Osama bin Laden. Ele sabe que, a partir de agora, pessoas e grupos muçulmanos não-fundamentalistas podem aderir ao terrorismo contra os EUA. Assim, ao invadirem o Iraque, Bush e Blair estimularam a proximidade de um confronto entre as duas civilizações.

Folha - O sr. já escreveu sobre a forma pela qual Saddam construiu em torno de si círculos de fiéis incondicionais para com isso manter-se no poder. Será difícil permitir a emergência de uma nova geração de lideranças, sem precisar contar com pessoas que, sobretudo entre os sunitas, tiveram vínculos com o ditador e seu partido?
Hiro -
As políticas imperialistas sempre esbarraram em problemas sérios ao tentarem controlar o Iraque. Em 1918, quando os britânicos obtiveram da Liga das Nações o mandado para manter o país sob protetorado, eles tinham duas alternativas: governar com as estruturas tribais ou instalar um sistema administrativo moderno. Optaram pela segunda hipótese. O resultado foi uma rebelião na qual 10 mil iraquianos foram mortos. Só então os britânicos recuaram.
Hoje, o Departamento de Estado quer promover um "transplante de cabeças", mantendo o partido Baath intacto em suas bases, enquanto Paul Wolfowitz [subsecretário americano da Defesa] cultiva a idéia nefelibata de "implantar" um regime democrático no Iraque.


Texto Anterior: Frases
Próximo Texto: Bagdá
História

Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.