São Paulo, quinta-feira, 23 de março de 2006

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ANÁLISE

Perde o fanatismo, ganha o nacionalismo

CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA

Se efetivamente obedecido, o cessar-fogo permanente decretado pelo ETA marcará o fim de um fanatismo que, a rigor, não se diferencia do fundamentalismo que levou a ações como, para ficar só na Espanha, os ataques aos trens de dois anos atrás.
Tanto não se diferencia que levou o governo da época (do conservador José María Aznar) a tentar manipular informações para atribuir a culpa ao grupo basco. Era manipulação, mas era também verossímil.
Convém aqui distinguir claramente o que de longe nem sempre se vê claro. Uma coisa é o nacionalismo basco, outra é o terrorismo/fanatismo basco.
O primeiro é a legítima expressão da maioria da sociedade local, como dá prova o fato de que os nacionalistas (ou mais exatamente o PNV, Partido Nacionalista Basco) ganharam todas as eleições na região desde a redemocratização, há quase 30 anos.
Mesmo quando outros nacionalismos patinaram, como nas recentes eleições galegas e catalãs, o PNV manteve a maioria.
Já o ETA usou mil braços políticos para disputar eleições e nunca teve respaldo do eleitorado.
Sobreviveu graças ao terror. Na forma de bombas, as mais midiáticas, mas também na forma de assassinatos covardes, que atingiam indistintamente figuras que poderiam representar o Estado espanhol, contra o qual em tese lutava o grupo, mas alcançavam também políticos representativos da sociedade basca.
Sem falar no chamado "imposto revolucionário", a chantagem com a qual empresários bascos eram obrigados a contribuir para a luta supostamente revolucionária, sob pena de serem mortos ou seqüestrados.
O nacionalismo obteve, por meios pacíficos, o máximo de autonomia para o País Basco, assim como outros nacionalismos contribuíram para que as comunidades históricas espanholas tenham hoje grau de autonomia provavelmente incomparável no planeta.
É verdade que não foi conquista só do nacionalismo. O grau de autonomia na Espanha obedeceu também ao clássico pêndulo político: a democracia é naturalmente descentralizadora quando vem na seqüência de uma ditadura, centralista por definição (no caso, a de Francisco Franco Bahamonde, que durou do fim da guerra civil, em 1939, até sua morte em 1975).
Foi precisamente a participação na luta contra o franquismo que deu alguma legitimidade ao terror do ETA. Nem era chamado de terrorismo, à época, até porque um ato terrorista, o assassinato do almirante Carrero Blanco, presumível delfim de Franco, desestruturou a sucessão autoritária e ajudou a transição à democracia.
Mas, com a democracia, o ETA perdeu sentido, porque os bascos não queriam a independência pela qual ela dizia lutar e porque a autonomia, esta sim desejada, veio com a volta ao regime democrático.
O suposto caráter socialista do grupo extremista basco lhe deu ainda uma sobrevida. Não era fácil para os partidos de esquerda rotular de terrorista quem havia sido companheiro de viagem na luta contra o franquismo.
Só com o fim do chamado socialismo real, após a queda do Muro de Berlim, veio a completa deslegitimação, até porque começou no governo de Felipe González, socialista.
Ficou mais fácil, então, deixar claro que o socialismo, filosoficamente libertário, nada tinha a ver com o terror, necessariamente liberticida.
Se já estava isolado na Espanha e no próprio País Basco, sobrevivendo do fanatismo, o ETA tinha (ou tem ainda) ecos na América Latina: as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) mantiveram contato mais ou menos estreito, conforme a época, com o grupo basco, que chegou a ter "professores" em território colombiano.
Na Venezuela, tradicional terra de asilo para perseguidos espanhóis, há também exilados etarras, alguns de relativa importância na estrutura do grupo.
É cedo, no entanto, para saber o efeito da renúncia às armas do ETA sobre grupos esquerdistas latino-americanos que nunca tiveram clareza sobre quais são os limites entre luta armada e terrorismo.
Na própria Espanha, é razoável supor que o cessar-fogo, contraditoriamente, atiçará o ânimo autonomista (mas não o independentista). Agora, nenhum político basco terá medo de ser confundido com um etarra (e portanto terrorista) se pedir mais autonomia do que já goza a região.
É sintomático que, antes mesmo da trégua declarada pelo ETA, a Catalunha tenha criado um incêndio nacional, ao aprovar um projeto de Estatuto autonômico em que a região era chamada de "nação", para escândalo dos que acham que nação há uma só, a Espanha.


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