|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
ANÁLISE
Perde o fanatismo, ganha o nacionalismo
CLÓVIS ROSSI
COLUNISTA DA FOLHA
Se efetivamente obedecido, o
cessar-fogo permanente decretado pelo ETA marcará o fim de um
fanatismo que, a rigor, não se diferencia do fundamentalismo que
levou a ações como, para ficar só
na Espanha, os ataques aos trens
de dois anos atrás.
Tanto não se diferencia que levou o governo da época (do conservador José María Aznar) a tentar manipular informações para
atribuir a culpa ao grupo basco.
Era manipulação, mas era também verossímil.
Convém aqui distinguir claramente o que de longe nem sempre
se vê claro. Uma coisa é o nacionalismo basco, outra é o terrorismo/fanatismo basco.
O primeiro é a legítima expressão da maioria da sociedade local,
como dá prova o fato de que os
nacionalistas (ou mais exatamente o PNV, Partido Nacionalista
Basco) ganharam todas as eleições na região desde a redemocratização, há quase 30 anos.
Mesmo quando outros nacionalismos patinaram, como nas
recentes eleições galegas e catalãs,
o PNV manteve a maioria.
Já o ETA usou mil braços políticos para disputar eleições e nunca
teve respaldo do eleitorado.
Sobreviveu graças ao terror. Na
forma de bombas, as mais midiáticas, mas também na forma de
assassinatos covardes, que atingiam indistintamente figuras que
poderiam representar o Estado
espanhol, contra o qual em tese
lutava o grupo, mas alcançavam
também políticos representativos
da sociedade basca.
Sem falar no chamado "imposto revolucionário", a chantagem
com a qual empresários bascos
eram obrigados a contribuir para
a luta supostamente revolucionária, sob pena de serem mortos ou
seqüestrados.
O nacionalismo obteve, por
meios pacíficos, o máximo de autonomia para o País Basco, assim
como outros nacionalismos contribuíram para que as comunidades históricas espanholas tenham
hoje grau de autonomia provavelmente incomparável no planeta.
É verdade que não foi conquista
só do nacionalismo. O grau de autonomia na Espanha obedeceu
também ao clássico pêndulo político: a democracia é naturalmente
descentralizadora quando vem na
seqüência de uma ditadura, centralista por definição (no caso, a
de Francisco Franco Bahamonde,
que durou do fim da guerra civil,
em 1939, até sua morte em 1975).
Foi precisamente a participação
na luta contra o franquismo que
deu alguma legitimidade ao terror
do ETA. Nem era chamado de terrorismo, à época, até porque um
ato terrorista, o assassinato do almirante Carrero Blanco, presumível delfim de Franco, desestruturou a sucessão autoritária e ajudou a transição à democracia.
Mas, com a democracia, o ETA
perdeu sentido, porque os bascos
não queriam a independência pela qual ela dizia lutar e porque a
autonomia, esta sim desejada,
veio com a volta ao regime democrático.
O suposto caráter socialista do
grupo extremista basco lhe deu
ainda uma sobrevida. Não era fácil para os partidos de esquerda
rotular de terrorista quem havia
sido companheiro de viagem na
luta contra o franquismo.
Só com o fim do chamado socialismo real, após a queda do
Muro de Berlim, veio a completa
deslegitimação, até porque começou no governo de Felipe González, socialista.
Ficou mais fácil, então, deixar
claro que o socialismo, filosoficamente libertário, nada tinha a ver
com o terror, necessariamente liberticida.
Se já estava isolado na Espanha
e no próprio País Basco, sobrevivendo do fanatismo, o ETA tinha
(ou tem ainda) ecos na América
Latina: as Farc (Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia)
mantiveram contato mais ou menos estreito, conforme a época,
com o grupo basco, que chegou a
ter "professores" em território colombiano.
Na Venezuela, tradicional terra
de asilo para perseguidos espanhóis, há também exilados etarras, alguns de relativa importância na estrutura do grupo.
É cedo, no entanto, para saber o
efeito da renúncia às armas do
ETA sobre grupos esquerdistas
latino-americanos que nunca tiveram clareza sobre quais são os
limites entre luta armada e terrorismo.
Na própria Espanha, é razoável
supor que o cessar-fogo, contraditoriamente, atiçará o ânimo autonomista (mas não o independentista). Agora, nenhum político
basco terá medo de ser confundido com um etarra (e portanto terrorista) se pedir mais autonomia
do que já goza a região.
É sintomático que, antes mesmo da trégua declarada pelo ETA,
a Catalunha tenha criado um incêndio nacional, ao aprovar um
projeto de Estatuto autonômico
em que a região era chamada de
"nação", para escândalo dos que
acham que nação há uma só, a Espanha.
Texto Anterior: ETA anuncia cessar-fogo permanente Próximo Texto: Espanha: É cedo para comemorar, afirma escritor Índice
|