São Paulo, quarta-feira, 23 de março de 2011

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Viver é perigoso

Mesmo se tomadas as devidas precauções, viver continuará sendo, como sabia Guimarães Rosa, muito arriscado

ANTÔNIO PRATA
COLUNISTA DA FOLHA

Guerras, terremotos, maremotos, enchentes, deslizamentos: nada disso é novo na história da humanidade. Novo é o nosso susto. Dos judeus do Antigo Testamento aos Bororo do Mato-Grosso, todos sempre acreditaram que, de tempos em tempos, por razões que nos eram inatingíveis, os deuses se enfureciam e mandavam fogo, água, gafanhotos, exércitos inimigos, chuva de enxofre e outras desgraças.
Nós expulsamos os deuses, mas preenchemos o vazio com um antropocentrismo tão autoconfiante quanto ingênuo. Cremos que com sismógrafos e exercícios físicos, com boas políticas e baixo teor de gorduras, com os algoritmos corretos e pensamento positivo, estaremos livres de todo o mal.
No dia seguinte ao terremoto do Japão, o repórter televisivo insistia com um geólogo: os abalos sísmicos não têm mesmo nada a ver com a ação do homem? O volume de gás e petróleo tirados do fundo da Terra não influi no movimento das placas tectônicas? O cientista, categórico, afirmava que não: nada que o homem faça ou deixe de fazer tem qualquer efeito sobre essas gigantescas massas sólidas, deslocando-se pelo mingau de magma.
Nos olhos do repórter, a mesma aflição de milhões de pessoas mundo afora, ao contemplar os vídeos do tsunami e não encontrar, na fúria lenta e silenciosa das águas, qualquer sentido subjacente.
Claro que nem todas as tragédias são inevitáveis e muitas delas são causadas, agravadas ou atenuadas por nossas ações. Mas, mesmo se tomadas as devidas precauções, viver continuará sendo, como sabiam Guimarães Rosa, os judeus do Antigo Testamento e os Bororo do Mato-Grosso, muito perigoso. Eis o que, talvez, tenhamos redescoberto. Eis a razão do nosso susto: lembramo-nos que não é fixo o chão em que apoiamos os nossos pés, ao mesmo tempo em que, do céu, as únicas luzes possíveis são as dos mísseis e das baterias anti-aéreas.


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