São Paulo, domingo, 23 de maio de 2004

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ORIENTE MÉDIO

Em meio a cadáveres de crianças, cuja contabilidade é incerta, cada lado prefere conviver com sua história

Ataques em Gaza criam guerra de versões

JAMES BENNET
DO ""NEW YORK TIMES", NO CAMPO DE

REFUGIADOS DE RAFAH, FAIXA DE GAZA

Instalado no meio de campos de cravos, o refrigerador do campo de Rafah, que normalmente contém flores ou legumes que serão vendidos a uma empresa israelense, foi emprestado aos mortos.
Foi esse refrigerador que o médico palestino procurou na manhã de quarta-feira, quando o mais recente ataque do Exército israelense deflagrou uma luta paralela para definir a realidade. Havia, de fato, crianças entre os mortos, como afirmaram os palestinos? Quantas? Elas morreram por disparos de atiradores israelenses ou pelos explosivos de terroristas?
O médico, Ahmed Abu Nikera, já estava farto dessas perguntas. Na sala úmida e escura, ele desenrolou um pano ensangüentado envolvendo um cadáver como se fosse uma múmia. "É uma criança", disse, mostrando o rosto pálido de Ibrahim al Qun, 14. "Foi por aqui que a bala saiu." Ele apontou um buraco preto, do tamanho de uma bola de beisebol, onde estivera o olho esquerdo do menino.
Outra coisa também foi anotada na fria contabilidade diária desse conflito: durante os combates da noite de terça-feira, o médico Ali Moussa, do hospital Al Najar, disse que havia sete menores de 18 anos entre os mortos. Mas uma lista de nomes e idades compilada pelos hospitais palestinos na manhã de quarta indicava quatro.
Ao lado do caos dos tiros, das granadas disparadas de tanques, das bombas e das máquinas blindadas de terraplanagem que fazem parte do cotidiano deste lugar, uma densa neblina de guerra recobre tudo. Também há uma guerra de neblina, de versões da realidade sempre conflitantes.
Mas também há uma realidade objetiva perdida entre as versões. Há uma criança morta, um buraco de bala. Quantas crianças mortas são demais é uma pergunta repetida por palestinos e israelenses sem sinal de resposta.
Algumas horas após a visita ao refrigerador, a vida por aqui deu outra guinada cruel e confusa. Na quarta-feira à tarde, um tanque e um helicóptero israelenses abriram fogo na hora em que manifestantes se aproximavam de um bairro na periferia de Rafah. Homens em agonia carregavam garotinhos que sangravam por ferimentos causados por estilhaços de granadas. Foi o caos total, o pânico, visão vertiginosa do inferno.
Mortos e feridos cobriam os leitos e o chão do hospital Al Najar. As TVs citavam mais de 20 mortos. Mas, com caneta na mão e caderno a postos, fomos obrigados a indagar: onde estão os corpos?
As autoridades palestinas falaram em ao menos dez mortos. Moussa afirmou que não podia "garantir", dizendo que algumas famílias levaram seus mortos para serem enterrados antes de os corpos chegarem ao hospital.
O governo israelense expressou seu pesar pela morte de civis. Qualificou o incidente como "muito grave". Disse que ele pode ter sido causado por disparos feitos por tanques e por explosivos deixados por terroristas. Os disparos feitos pelo helicóptero e os tanques foram legítimos, disse o governo, porque havia atiradores na multidão de manifestantes.
Muitas testemunhas afirmaram que não havia atiradores. Segundo o Exército, a questão está sendo investigada. Cada lado aproveita o que vê como sendo o hábito do outro lado de difundir falsidades para lançar dúvidas sobre as alegações relativas às mortes.
Na noite de terça-feira, palestinos afirmaram que atiradores israelenses tinham matado duas outras crianças que retiravam roupa do varal: Asma al Moghair, 16, e seu irmão Ahmad, 13.
Mas um oficial israelense que chefiou a operação disse que um inquérito inicial sobre as mortes foi inconclusivo. Ele observou que os palestinos deixaram muitas bombas na esperança de matar soldados. "Não excluímos a possibilidade de esses jovens terem sido mortos pelas bombas", disse ele. "Posso afirmar inequivocamente que ninguém de nossa unidade pôs esse garoto ou essa moça sob a mira para matá-los."
O cadáver de Asma estava no necrotério do hospital Al Najar, que, tendo capacidade para apenas seis corpos, logo ficara lotado. Nikera desamarrou uma corda que prendia o pano em volta do pescoço da garota e puxou o cabelo de Asma para trás, revelando sobre sua orelha esquerda um buraco do tamanho de uma moeda. Era o furo por onde o projétil saíra, disse. Ela não apresentava ferimentos por estilhaços de bomba ou granada. "Isto é o que os israelenses chamam de acidente."
O corpo de Ahmad estava no refrigerador de flores. Ele apresentava um furo semelhante na cabeça, acima da orelha esquerda, e tampouco ostentava ferimentos causados por estilhaços.
Muitas dessas versões jamais serão conciliadas. Cada lado prefere conviver com sua versão dos fatos. A violência segue, e fazer sua contabilidade pode parecer um esforço sem sentido.
Quando o tumulto se aquietou no hospital Al Najar, um médico exausto se deixou cair sobre uma cadeira, afrouxando a gravata azul em torno do pescoço. "Não faz diferença", disse ele, referindo-se aos mortos. "Para todos nós, a vida é igual à morte." Nos corredores do hospital, funcionários com baldes de água lavavam o sangue endurecido sobre os ladrilhos de pedregulho esmagado.


Tradução de Clara Allain


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