São Paulo, segunda-feira, 23 de maio de 2011

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China revela esquema de venda de crianças

Comitê de Planejamento Familiar em província pobre é acusado de levar bebês à força para adoção por estrangeiros

Segundo revista, ação visa cumprir Política do Filho Único e engordar cofres públicos; comitê não falou sobre o caso

FABIANO MAISONNAVE
ENVIADO ESPECIAL À PROVÍNCIA
DE HUNAN (CENTRO-SUL DA CHINA)


Aos 64 anos, a agricultora Liu Shuzhen parece mais mãe do que avó, o neto de um ano no colo. E é com dor de mãe que ela lembra o dia 15 de março de 2004, quando o Comitê de Planejamento Familiar da região de Shaoyang a separou de sua neta Zhou Zuna, de apenas três meses.
"Eles pediram 10 mil yuans [R$ 2.500]. Como eu não tinha dinheiro, eles disseram que eu tinha de deixar a criança. Eu me recusei, então duas pessoas me agarraram e me obrigaram a colocar as digitais num documento", conta Liu à Folha.
Zhou, cujo paradeiro é desconhecido, é uma das pelo menos 20 crianças retiradas dos pais na empobrecida área rural de Hunan.
Segundo reportagem da revista "Caixin", considerada a mais independente da China, a ação tinha dois objetivos: cumprir com as metas da Política do Filho Único e engordar os cofres públicos.
Levadas a orfanatos, as crianças, rebatizadas com o sobrenome Shao, eram classificadas como órfãs e adotadas por casais estrangeiros em troca de US$ 3.000 (R$ 4.900), revelou "Caixin". A informação foi corroborada pela agência oficial Xinhua.
As crianças foram adotadas por famílias americanas, holandesas e polonesas. Por cada uma, o Comitê de Planejamento Familiar recebia pelo menos mil yuans (R$ 250).
A prática teria começado em 2001. Até então, como em outras regiões da China, a falta de pagamento da multa por desrespeito à Política do Filho Único resultava em demolição da casa da família.
No caso de Liu, o bebê levado era um dos três netos que ela cria de seus dois filhos, que, como milhões de outros camponeses pobres, migraram para a rica região costeira do sul da China. Submetidos a longas horas de trabalho e vivendo em casas precárias, acabam deixando os filhos, que veem uma vez por ano, no Festival da Primavera, feriado geralmente celebrado em fevereiro.
Localizada na vila rural de Huangxing, a casa de três cômodos tem paredes de tijolo aparente e madeira irregular. Há poucos móveis e duas enormes imagens do líder comunista Mao Tse-tung (1893-1976), nascido na região.
O casal de idosos vive até hoje do cultivo de arroz em uma área de apenas 0,15 hectare. A renda é complementada por trabalhos esporádicos de pedreiro do marido, Zhou Leping, 74, que cobra diária de R$ 20. Durante a entrevista, ele tentava esconder os pés descalços atrás de um banquinho de madeira.

ESPANCAMENTO
Contendo o choro, Liu diz que ela e a neta foram levadas à sede do comitê junto a outras famílias. "Passei aquela noite toda segurando o bebê no colo. Eu não estava sozinha, vi funcionários espancando outras vítimas."
A avó conta ainda que tentou mentir ao comitê, dizendo que a criança não era do seu filho, mas havia sido abandonada na porta da sua casa. Em vão. Ao todo, afirma, foram levadas 16 crianças de sua vizinhança.
A revelação do esquema repercutiu bastante na opinião pública chinesa, levando o governo de Hunan a abrir inquérito sobre o comitê, que não se pronunciou.
Nos populares fóruns da internet chinesa, a maioria dos comentários foi crítica, mas houve quem apoiasse a adoção das crianças por famílias com mais recursos.
"Comparada às horríveis políticas do passado, como aborto forçado e infanticídio, esta é não só benigna como econômica", diz um leitor anônimo de "Caixin".
Instituída há 30 anos, a Política do Filho Único foi implantada pela China para controlar o crescimento da maior população do mundo.
Um dos reflexos é que, desde os anos 90, dezenas de milhares de crianças chinesas, a maioria meninas, foram adotadas por estrangeiros, principalmente dos EUA. A explicação é que os pais doaram as filhas para a adoção por preferirem ter o único filho do sexo masculino.


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