São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002

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Palestinos querem eleições e reformas já


Arafat está interessado em salvar a própria pele. Ele teve quase dez anos para governar seu pequeno reino e conseguiu apenas o repúdio



Líderes de movimentos de libertação não deveriam expor seus povos desarmados à selvageria de criminosos de guerra como Sharon



EDWARD SAID

Seis chamados distintos por reformas e eleições palestinas estão sendo lançados neste momento. Cinco deles são, no que diz respeito aos próprios palestinos, inúteis e irrelevantes.
O premiê de Israel, Ariel Sharon, quer uma reforma como maneira de tornar ainda mais impossível a vida nacional palestina -ou seja, como extensão de sua política fracassada de intervenção e destruição constantes. Ele quer livrar-se de Iasser Arafat, retalhar a Cisjordânia, dividindo-a em cantões cercados, reinstalar uma autoridade de ocupação -de preferência com a ajuda de alguns palestinos-, seguir adiante com os assentamentos e manter a segurança israelense da mesma maneira que já vem fazendo. Suas alucinações e obsessões próprias o cegaram a tal ponto que ele não consegue compreender que isso não resultará em paz ou segurança e, com certeza, não na "calma" da qual não pára de falar. As eleições palestinas, no esquema de Sharon, não têm importância alguma.
O segundo chamado é dos Estados Unidos, que querem reformas principalmente como uma maneira de combater o "terrorismo" -termo que é uma panacéia que não leva em conta história, contexto, sociedade ou qualquer outra coisa. George W. Bush sente uma aversão visceral por Arafat e não entende nada sobre a situação palestina. Dizer que ele e sua administração descabelada "querem" alguma coisa equivale a dignificar demais uma sequência de impulsos, inícios, repentes, retrações, denúncias, afirmações totalmente contraditórias, missões inúteis conduzidas por diversos funcionários de sua administração e reviravoltas totais, conferindo a tudo isso o status de desejo global, algo que, evidentemente, não existe.
Incoerente, a não ser quando se trata das pressões e das pautas de prioridades do lobby israelense e da direita cristã, cujo líder o presidente se tornou, a política de Bush consiste, na realidade, de chamados a Arafat para que ponha fim ao terrorismo e (quando ele quer aplacar os árabes) para que alguém, em algum lugar, de alguma maneira, crie um Estado palestino e uma grande conferência e, finalmente, para que Israel continue a receber o apoio total e incondicional dos Estados Unidos, incluindo, provavelmente, pôr fim à carreira de Arafat. Além disso ou fora disso, a política americana ainda aguarda ser formulada, por alguém, em algum lugar, de alguma maneira.
Devemos manter em mente sempre, porém, que o Oriente Médio é uma questão de política nacional para os EUA, não de política externa -logo, sujeita às dinâmicas internas e imprevisíveis da sociedade americana.
Tudo isso condiz muito bem com a exigência israelense, que não quer outra coisa a não ser tornar a vida dos palestinos, coletivamente, mais infeliz, miserável e insuportável do que já é, quer por meio de incursões militares, quer pela imposição de condições políticas impossíveis que atendem à frenética obsessão de Sharon por dizimar os palestinos para sempre. É claro que existem israelenses que querem coexistir com um Estado palestino, assim como há judeus americanos que querem coisas semelhantes -mas nenhum desses dois grupos detém qualquer poder determinante. Sharon e a administração Bush estão dirigindo o show.
Em terceiro lugar há a proposta dos líderes árabes, que, pelo que consigo entender, é uma combinação de vários elementos diferentes, nenhum dos quais ajuda os palestinos diretamente. Para começo de conversa há o medo de suas próprias populações, que são testemunhas da destruição em massa cometida por Israel nos territórios palestinos e, essencialmente, que não é contestada, sem qualquer interferência árabe séria ou tentativa árabe de impedi-la. O plano de paz apresentado na cúpula de Beirute oferece a Israel precisamente aquilo que Sharon vem rejeitando -a terra em troca de paz- e é uma proposta que não possui armas convincentes nem cronograma.
Pode ser positivo tê-lo registrado oficialmente, como contrapeso à beligerância israelense sem disfarce, mas nós não devemos alimentar ilusões sobre sua verdadeira intenção, que, como os chamados por reforma palestina, consiste em funcionar como gesto de apaziguamento feito às populações árabes enfurecidas, que estão totalmente fartas da medíocre inação de seus governantes.
Em segundo lugar, é claro, há o fato de que a maioria dos regimes árabes está pura e simplesmente farta do problema palestino. Esses regimes parecem não ter problema ideológico em encarar Israel como Estado judaico sem fronteiras declaradas e que ocupa Jerusalém, a Cisjordânia e a faixa de Gaza de maneira ilegal há 35 anos, ou, tampouco, com a marginalização dos palestinos causada por Israel. Estariam dispostos a aceitar essas injustiças terríveis sem maiores problemas, desde que Arafat e seu povo simplesmente se comportassem ou fossem embora, sem alarde. Em terceiro lugar, é claro, há o desejo que sentem os líderes árabes há anos de conquistar a benevolência dos Estados Unidos e, entre eles, de competir pelo título de aliado árabe mais importante dos EUA.
Talvez eles simplesmente não tenham consciência do desprezo que a maioria dos americanos lhes dedica e de quão pouco seu status cultural e político é compreendido ou valorizado nos Estados Unidos.
O quarto chamado no coro generalizado pedindo reformas vem da Europa. Mas os europeus apenas correm de um lado a outro, enviando emissários para falar com Sharon e Arafat; eles fazem declarações retumbantes em Bruxelas, financiam alguns projetos e mais ou menos param por aí, tão grande é a sombra lançada sobre eles pelos Estados Unidos.
O quinto chamado é o de Iasser Arafat e de seu círculo de seguidores, que, de repente, descobriram (pelo menos na teoria) as virtudes da democracia e da reforma. Sei que falo desde uma longa distância do campo de batalha e conheço, também, todos os argumentos segundo os quais Arafat, cercado, é um símbolo potente da resistência palestina contra a agressão israelense, mas cheguei a um ponto em que acho que nada disso ainda faz qualquer sentido. Arafat está interessado simplesmente em salvar sua própria pele. Ele teve quase dez anos de liberdade para governar seu pequeno reino e, em essência, conseguiu apenas atrair para si e para a maioria de sua equipe reações de escárnio e repúdio. A Autoridade Nacional Palestina tornou-se sinônimo de brutalidade, autocracia e corrupção inimaginável.
Por que alguém pode acreditar por um instante sequer, neste momento, que ele seja capaz de qualquer coisa diferente ou que seu novo gabinete mais enxuto (dominado pelos mesmos velhos rostos marcados pela derrota e pela incompetência) vai conseguir operar reformas de fato é algo que desafia a razão. Arafat é líder de um povo que vem sofrendo há anos e que, nos últimos 12 meses, ele expôs a dor e sofrimento inaceitáveis, tudo isso baseado numa combinação de sua ausência de plano estratégico e sua confiança imperdoável nas boas intenções e práticas de Israel e dos EUA, através de Oslo. Líderes de movimentos de libertação e independência não deveriam expor seus povos desarmados à selvageria de criminosos de guerra como Sharon, contra o qual não havia defesa real nem preparo antecipado.
Para que, então, provocar uma guerra cujas vítimas, em sua maioria, seriam pessoas inocentes, quando você não possui nem a capacidade militar de travar essa guerra nem o peso diplomático necessário para pôr fim a ela? Tendo feito isso por três vezes já (na Jordânia, no Líbano e na Cisjordânia), Arafat não deveria ter a oportunidade de provocar um quarto desastre. Essa oportunidade não lhe deveria ser permitida.
Ele já anunciou que haverá eleições no início de 2003, mas o verdadeiro alvo de sua atenção é a reorganização dos serviços de segurança. Não é de hoje que chamo a atenção em minhas colunas para o fato de que o aparelho de segurança de Arafat sempre foi projetado principalmente para servir a ele e a Israel, já que os acordos de Oslo foram baseados no fato de ele ter fechado um acordo com a ocupação militar israelense. Israel estava preocupada exclusivamente com sua segurança, pela qual responsabilizava Arafat (posição que ele, por sinal, aceitava de bom grado já em 1992). Enquanto isso, Arafat usou os 15, 19 ou seja lá qual for o número correto de grupos para disputarem o poder entre eles, tática que ele aperfeiçoou em Fakahani (região de Beirute onde ficava o QG de Arafat) e que é evidentemente estúpida, no que diz respeito ao bem comum. Ele nunca chegou a realmente refrear o Hamas e o Jihad Islâmico, fato que se encaixava perfeitamente com os objetivos de Israel, na medida em que teria uma desculpa pronta para utilizar os atentados suicidas dos chamados mártires (insensatos) para punir ainda mais todo o povo palestino. Se existe uma coisa, somada ao regime destrutivo de Arafat, que nos fez mais mal do que este, como causa, é essa política calamitosa de matar civis israelenses, política esta que comprova mais uma vez diante do mundo que somos de fato terroristas, que somos um movimento imoral. Quem ganha com isso ninguém até agora foi capaz de dizer.
Tendo, portanto, feito um acordo com a ocupação, por meio de Oslo, Arafat nunca esteve realmente em posição de poder liderar um movimento para acabar com ela. E, ironicamente, agora ele está tentando fechar outro acordo, tanto para salvar sua pele quanto para provar aos EUA, a Israel e aos outros árabes que ele merece mais uma chance.
Eu, pessoalmente, não ligo a mínima para o que dizem Bush, Sharon ou os líderes árabes: estou interessado naquilo que nós, enquanto povo, pensamos de nosso líder, e acho que precisamos ter clareza absoluta para rejeitar integralmente seu projeto de reforma, eleições, reorganização do governo e dos serviços de segurança.
O histórico de fracassos de Arafat é sombrio demais, sua capacidade de líder está demasiado enfraquecida e incompetente para que ele possa tentar, mais uma vez, salvar-se para lançar uma nova tentativa.
O sexto e último chamado é o do próprio povo palestino, que está clamando, justificadamente, por reformas e eleições. Esse clamor, a meu ver, é o único legítimo entre os seis que descrevi resumidamente aqui. É importante observar que a administração atual de Arafat, assim como o Conselho Legislativo, já ultrapassaram seu mandato original, que deveria ter chegado ao fim com uma nova rodada de eleições, em 1999. Ademais, as eleições de 1996 foram inteiramente baseadas nos acordos de Oslo, que, na prática, simplesmente autorizaram Arafat e sua gente a administrar pedaços da Cisjordânia e da faixa de Gaza para Israel, sem qualquer soberania ou segurança reais, já que Israel conservou o controle das fronteiras, da segurança, da terra (na qual dobrou e até triplicou os assentamentos), da água e do ar. Em outras palavras, a velha base para as eleições e as reformas, que era Oslo, já foi invalidada. Qualquer tentativa de seguir em frente com base nesse tipo de plataforma não passa de artimanha perdulária e não vai resultar em reforma ou eleições reais. Vem daí a confusão atual, que leva todo palestino em qualquer parte do mundo a sentir amarga frustração e vergonha.
O que pode ser feito, então, se a velha base da legitimidade palestina não existe mais, na realidade? Com certeza não pode haver volta a Oslo, não mais do que pode haver qualquer retorno às leis jordanianas ou israelenses. Como estudioso dos períodos de transformação histórica importantes, eu gostaria de chamar a atenção para o fato de que, nos casos em que aconteceu uma ruptura importante com o passado (como, por exemplo, durante o período que se seguiu à queda da monarquia devido à Revolução Francesa, ou ao fim do apartheid, na África do Sul, antes das eleições de 1994), uma nova base para a legitimidade precisa ser criada por aquela que, em última análise, é a única fonte real de legitimidade: a própria população. Os principais interesses existentes no interior da sociedade palestina, aqueles que mantêm a vida em andamento -que abrangem desde os sindicatos até os profissionais de saúde, professores, agricultores, advogados, médicos, além das muitas ONGs-, precisam tornar-se a base sobre a qual será erguida a reforma palestina, apesar das incursões e da ocupação israelense.
Parece-me inútil esperar que Arafat, a Europa, os EUA ou os árabes o façam: é absolutamente necessário que seja feito pelos próprios palestinos, por meio de uma Assembléia Constituinte que represente todos os setores mais importantes da sociedade palestina. Apenas um grupo como esse, formado pelas próprias pessoas e não por remanescentes das disposições de Oslo -e certamente não pelos resquícios maltrapilhos da desacreditada autoridade de Arafat-, pode ter a esperança de conseguir reorganizar a sociedade palestina a partir da condição ruinosa e catastroficamente incoerente em que se encontra.
Existe uma tarefa básica para tal Assembléia Constituinte, que consiste em construir um sistema emergencial de ordem que tenha dois objetivos. Um deles é manter a vida palestina funcionando de modo ordeiro, com plena participação de todos os envolvidos. O outro é escolher um comitê executivo emergencial encarregado de pôr fim à ocupação, não de negociar com ela. Está claro que, em termos militares, não podemos fazer frente a Israel. Quando o equilíbrio de poder é tão desigual, fuzis Kalachnikov não constituem armas eficazes. O que é preciso é um método de luta criativo, que mobilize todos os recursos humanos que temos à disposição para destacar, isolar e pouco a pouco tornar insustentáveis os principais aspectos da ocupação israelense -ou seja, os assentamentos, as estradas dos assentamentos, as barreiras nas estradas e as demolições de casas.
O grupo que cerca Arafat atualmente é incapaz de imaginar uma estratégia desse tipo, muito menos de realmente implementá-la: é falido demais, demasiado envolvido em práticas corruptas egoístas e demasiado onerado pelo peso dos fracassos do passado.
Para que uma estratégia palestina desse tipo possa funcionar, é preciso que haja um componente israelense feito de indivíduos e grupos com os quais possa e seja estabelecida uma base comum para a luta contra a ocupação.
É essa a grande lição a ser tirada da luta sul-africana: o fato de que ela propôs a visão de uma sociedade multirracial, visão esta da qual não se desviaram, em nenhum momento, nem as pessoas nem os grupos ou seus líderes.
A única visão a sair de Israel, hoje, é a violência, a separação forçada e a subordinação contínua do palestino à idéia da supremacia judaica. Nem todo israelense acredita nisso, é claro, mas cabe a nós projetar a idéia de coexistência em dois Estados que têm relações naturais entre eles, com base na soberania e na igualdade.
O sionismo "mainstream" ainda não conseguiu produzir tal visão, então ela precisa sair do povo palestino e de seus novos líderes, cuja nova legitimidade precisa ser construída agora, no momento em que tudo está caindo por terra e todos querem refazer a Palestina à sua própria imagem e segundo suas próprias idéias.
Nunca enfrentamos um momento pior, nem tampouco, ao mesmo tempo, tão seminal. A ordem árabe está totalmente de cabeça para baixo; a administração norte-americana se encontra controlada, na prática, pela direita cristã e pelo lobby israelense (em 24 horas, tudo com que George W. Bush parecia ter concordado com o presidente Hosni Mubarak, do Egito, foi invertido pela visita de Sharon), e nossa sociedade foi quase destruída por uma liderança fraca e a insanidade de se imaginar que atentados suicidas pudessem conduzir diretamente à criação de um Estado islâmico palestino. Sempre existe esperança para o futuro, mas é preciso saber procurá-la e encontrá-la no lugar certo. Está muito claro que, na ausência de qualquer política série de informação política palestina ou árabe nos EUA (especialmente no Congresso), não podemos nos iludir, por um instante sequer, acreditando que Powell e Bush estejam prestes a redigir uma pauta real de reabilitação palestina. É por isso que eu não canso de repetir que o esforço precisa vir de nós, através de nós, por nós e para nós. Estou ao menos tentando sugerir uma abordagem diferente. Quem, a não ser o próprio povo palestino, pode construir a legitimidade de que ele precisa para governar-se e combater a ocupação com armas que não matem inocentes e nos levem a perder mais apoio do que nunca?
Uma causa justa pode facilmente ser subvertida por meios ruins, inadequados ou corruptos. Quanto antes essa idéia for posta em prática, maior será a chance que teremos de nos conduzirmos para fora do impasse atual.

O ensaísta Edward Said é um dos principais intelectuais palestinos. Radicado nos EUA, é professor de literatura comparada na Universidade Columbia (Nova York) e autor de vários livros, entre eles "Orientalismo", "Cultura e Imperialismo" e "Out of Place" (sua autobiografia)


Tradução de Clara Allain


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