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São Paulo, domingo, 23 de novembro de 2003

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Conflitos internos desafiam a unidade israelense

HELOISA PAIT
FREE-LANCE PARA A FOLHA

Os últimos filmes de Amos Gitai mostram uma faceta da sociedade israelense que é encoberta pelas tensões com os palestinos: seus próprios conflitos internos.
"O Dia do Perdão" narra o desgosto dos soldados com um governo que não os preparou para a Guerra do Iom Kipur (1973). "Kadosh" mostra o beco sem saída em que estão as judias ortodoxas no interior de uma sociedade moderna. E "Kedma" conta a iniciação dos refugiados europeus na realidade israelense. Nele os combatentes locais enganam os britânicos, estabelecem um diálogo precário com os árabes e lutam quando necessário. Mas os refugiados que pegam em armas pela primeira vez estão sempre deslocados, sem saber que língua falar ou aonde ir. Morrem às dezenas.
Gitai toca nesses filmes em conflitos sobre os valores mais básicos de uma nação. Os judeus que seguem à risca as leis religiosas somam 4% da população judaica do país e impõem algumas delas aos demais, como as referentes ao casamento e ao respeito ao sábado. Mas a grande maioria laica acompanha as mudanças de costumes das sociedades mais liberais e aceita a contragosto as regras religiosas, ou expressa seu desconforto votando no novo partido anti-religioso, Shinui.
Não é só a religião que divide Israel: uma em cada três pessoas nasceu fora do país, proporção grande até mesmo comparada com a de países de forte imigração, como o Canadá. As sucessivas ondas de imigração vindas da Europa, do mundo árabe, da América Latina, da África e, recentemente, da Rússia levaram ao país uma rara diversidade social.
No início, a ideologia sionista dava coesão a esse grupo diverso: era preciso construir um Estado com um território e uma língua comuns, e não havia problema se algumas idiossincrasias culturais fossem perdidas.
É possível também que costumes políticos oriundos ainda das antigas comunidades judaicas da Europa, que privilegiavam a busca informal do consenso, tenham evitado o confronto entre grupos com profundas diferenças étnicas e religiosas: algo como o nosso "jeitinho", que passa por cima das diferenças sem nunca resolvê-las.
Mas, para muitos analistas, essa coesão começa a se desfazer. O sentimento de inutilidade quanto à ocupação em Gaza e na Cisjordânia faz muitos israelenses evitarem aberta ou silenciosamente o Exército, que sempre foi um grande fator aglutinador nessa sociedade. A globalização, com sua oferta de bens de consumo e de bens culturais diversos, acaba criando subculturas que nada têm a ver com o sionismo socialista original: "Está todo mundo vendo "O Clone'!", diz, entusiasmada, a curadora Sara Harel, 45.
Para Maha Sawbah, 32, estudante de pós-graduação da Universidade de Haifa, no momento em que o conflito com os palestinos for resolvido, as tensões sociais internas vão se expressar: "Agora eles não têm tempo e energia para isso". Em entrevista à Folha, ela chama a atenção para a atual busca de espaço político pelos judeus de origem árabe.
Para o empresário israelense Uri Sade, 41, atualmente vivendo no Brasil, as discussões políticas sobre o conflito com os palestinos são frequentes entre amigos e familiares. "A verdade é que ninguém sabe qual o melhor caminho. Mas um tenta convencer o outro de seu ponto de vista: construir o muro, usar a força, negociar? Não sei." Mas, para ele, essas discussões não chegam a afetar as relações pessoais.
A professora Eva Etzioni-Halevy, da Universidade Bar-Ilan, preocupa-se com essa fragmentação social e ideológica, que pode levar, em última instância, a uma crise das instituições democráticas do Estado. Em seu livro "The Divided People" (o povo dividido), ela propõe uma volta aos valores comunitários e aos símbolos do sionismo original. Mas, com as fortes críticas à história oficial israelense feitas por jovens historiadores, essa volta às origens parece bem difícil. Além disso, esses valores foram apropriados de maneira tão sectária pelos colonos israelenses que vivem nos territórios ocupados que, provavelmente, não servem mais como ideologia comum a um povo.
Para o professor Alan Dowty, da Universidade de Notre Dame, nos EUA, para evitar essa fragmentação sem impor nenhuma ideologia em particular, seria fundamental construir uma sociedade multicultural, baseada nas raízes judaicas de respeito à diversidade e à diferença de opiniões. Uri Ram, professor da Universidade de Bersheva (Israel), vai mais além, defendendo um Estado pós-sionista sem nenhuma identidade religiosa ou étnica.


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