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OPINIÃO
Erros repetidos não podem ser acobertados pelos escombros
Ajuda mal planejada e mal implementada não conseguirá produzir resultados esperados pela generosidade dos estrangeiros e pela boa vontade dos haitianos
MICHÈLE ORIOL
DANIEL SUPPLICE
MICHEL SOUKAR
ERIC BALTHAZAR
JEAN-PHILIPPE BELLEAU
ESPECIAL PARA A FOLHA
NÓS, ACADÊMICOS e
intelectuais haitianos,
revirando ainda os escombros de nossas casas e vidas
destruídas, esperamos ser ouvidos por cima dos clamores de
comentaristas e autoridades.
Isso é tanto mais importante
porque o futuro do Haiti se decide agora. Queremos apresentar aqui uma avaliação franca
dos problemas que o Haiti enfrenta e oferecer uma nova maneira de pensar a respeito da
reconstrução da capital, Porto
Príncipe, e do Estado haitiano.
As perdas humanas e os danos materiais são extremamente pesados, tanto pela dimensão do tremor como pela
surpresa com que foi vivido.
Mas essa catástrofe foi anunciada. Vários cientistas haviam
advertido quanto ao risco iminente de um terremoto na área
da capital e propuseram medidas simples e não tão caras para
preparar a população. As autoridades ignoraram completamente esses alertas.
Nenhuma criança haitiana
foi orientada a buscar proteção
sob um móvel ou sob o umbral
das portas. O desastre deixou as
autoridades completamente
sem reação. As iniciativas mais
importantes para a prevenção
de riscos e resposta a emergências financiadas pela cooperação internacional nos últimos
anos não tiveram nenhuma eficácia no longo prazo. Os bilhões
de dólares gastos nos últimos
15 anos em infraestrutura geraram resultados pífios.
Para além das reflexões sobre
a inevitabilidade dos desastres
naturais, devemos tirar conclusões a partir da resposta às catástrofes de 2004 e 2008 no
Haiti e dos US$ 600 milhões
que custa a cada ano a presença
da ONU. De outro modo, a ajuda será novamente engolida
por um gigantesco buraco negro de inércia, corrupção e incompetência. Reciclar os mesmos projetos é uma receita para o fracasso. Ajuda mal planejada e mal implementada não
produzirá os resultados esperados pela generosidade dos estrangeiros e pela boa vontade
dos haitianos.
O que restava do Estado haitiano ruiu junto com a capital.
O colapso do palácio presidencial, da Assembleia Nacional e
da maioria dos ministérios serve como uma metáfora bem
adequada. A destruição do Estado haitiano, iniciada há 50
anos, foi completada.
A população reconheceu a
total incapacidade das autoridades para oferecer qualquer
tipo de resposta à perturbação
no país ou para coordenar os
esforços internacionais. Um
presidente abalado, desconexo,
imóvel se mostrou incapaz de
se dirigir a seu povo, a não ser
para dizer que também ele estava desabrigado. Na verdade, a
única personalidade política a
falar publicamente e abordar a
situação foi o presidente americano, Barack Obama.
Nenhum de nós chegou a se
surpreender com a completa
ausência de um Estado há muito morto. Nessas condições,
ninguém deveria fingir que instituições nacionais tenham sobrevivido à catástrofe e sejam
capazes de operar. Tememos
inclusive que autoridades haitianas utilizem o desastre como
uma oportunidade para permanecer no poder após o fim de
seus mandatos em dezembro,
defendendo a unidade nacional, a continuidade e a assim dita "estabilidade política".
Sem dúvida, o primeiro passo
é a criação de uma estrutura
centralizada, que deveria ser
composta por haitianos investidos da mais alta autoridade e
seus aliados mais sólidos, os
países mais comprometidos e
engajados. Mais importante,
deveria ser inteiramente integrado e não constituído por
duas alas, estrangeiros com
seus projetos de um lado e ministros despreparados do outro. Foi-se o tempo em que governos estrangeiros podiam se
esconder por trás da ONU ou
dizer: "Aqui está o dinheiro, e
assim fizemos a nossa parte".
Nos últimos seis anos, os arranjos estabelecidos entre um
Estado falido e as desorientadas Nações Unidas e outras organizações multilaterais produziram um fracasso retumbante. Enquanto estas ofereciam os fundos de ajuda, aquelas legitimavam-nas e implementavam-nos, com resultados, na melhor das hipóteses,
inexpressivos. À frente dessa
nova estrutura de comando e
coordenação somente poderiam estar os americanos ou
franceses, uma vez que a liderança dos esforços multilaterais por países caribenhos ou
latino-americanos nos últimos
15 anos simplesmente não funcionou.
Apenas grandes potências
têm a vontade, a visão e os
meios para responder no longo
prazo pelos compromissos assumidos. O Haiti não tem condições de servir outra vez como
tubo de ensaio para ambições
de potências regionais, cujo papel nos últimos anos tem sido,
na melhor das hipóteses, supérfluo. Erros repetidos não
podem ser acobertados pelos
escombros. A responsabilidade
jamais assumida por resultados
jamais alcançados não deve desaparecer numa vala comum.
O público internacional deve
saber que, se o presidente haitiano está desacreditado aos
olhos de seu povo, o mesmo
acontece com a ONU. Se ela
pretende desempenhar um papel, qualquer que seja, deve fazê-lo sob as ordens desse comando central. A partir daí, deveríamos enfocar o planejamento fundiário, a infraestrutura e a educação, conformando um modelo de planejamento nacional.
Qualquer coisa aquém disso
fará com que daqui a dez anos
todos se perguntem outra vez
onde foram parar os bilhões investidos. Qualquer coisa além
disso e nenhum grau mínimo
de confiança mútua poderá ser
restabelecido. E, enquanto a
confiança se esvai e o povo haitiano se desespera, só nos resta
contar com a boa vontade de
nossos amigos da República
Dominicana, do Brasil, do México e, falhando todos, de Deus.
MICHÈLE ORIOL, socióloga, é professora de sociologia da Universidade de Estado do Haiti; DANIEL SUPPLICE, historiador, é professor de história da Universidade de Estado do Haiti; MICHEL SOUKAR é historiador; ERIC BALTHAZAR
é sociólogo; JEAN-PHILIPPE BELLEAU, antropólogo, é professor de antropologia da Universidade Harvard. Todos os autores são haitianos.
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