São Paulo, domingo, 24 de fevereiro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Filarmônica de NY polemiza ao se apresentar na Coréia do Norte

Conservadores acusam maestro de legitimar regime do ditador Kim Jong-il; regente reage e diz que "quem tem casa de vidro não deve ficar atirando tijolos"

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

A Orquestra Filarmônica de Nova York estará se apresentando na terça à noite em Pyongyang, a capital da fechadíssima Coréia do Norte. O convite para o concerto foi feito pelo governo norte-coreano. O Departamento de Estado concordou e "encorajou" à iniciativa, sem considerá-la oficial.
Raramente um concerto gerou tanto barulho -nada a ver com as três peças que os 106 músicos e o maestro Lorin Maazel, 77, trarão no programa. É barulho de política, que saiu sobretudo de ambientes conservadores americanos.
A questão era basicamente a de saber até que ponto a mais importante orquestra de Nova York não estaria indiretamente reconhecendo a legitimidade da ditadura de Kim Jong-il. Washington e Pyongyang não têm relações diplomáticas.
O primeiro lance na controvérsia partiu de Richard Allen, assessor de segurança nacional do presidente Ronald Reagan, e do ensaísta Chuck Downs, ambos da Comissão Americana de Direitos Humanos na Coréia do Norte. O regime comunista, disseram no final de outubro em artigo no "New York Times", está interpretando a iniciativa da Filarmônica "como um tributo e não como um ato de generosidade".
Mesmo de modo indireto, argumentaram, a orquestra entregaria a Kim Jong-il algo que ele inevitavelmente usaria como uma peça de propaganda.
O segundo lance veio de um dos intelectuais mais refinados dos Estados Unidos, Terry Teachout, que é blogueiro em Nova York, especialista em jazz e música erudita e crítico de teatro do "Wall Street Journal".
Em texto publicado pouco antes do Natal, ele qualificou o concerto de Pyongyang de "um show de marionetes cujo objetivo é dar legitimidade a um regime desprezível". Lembrou indignado a existência de 150 mil prisioneiros políticos.
O maestro Lorin Maazel, americano nascido na França e regente com intensa carreira nos Estados Unidos e na Europa, saiu então em defesa da turnê - para a qual a Filarmônica já viajou no último dia 7, com apresentações em Taiwan, Hong Kong, Xangai, Pequim e as capitais das duas Coréias.
"As pessoas que moram em casas de vidro não deveriam ficar atirando tijolos." Citou a reputação americana de maltratar prisioneiros, talvez uma alusão a Guantánamo, em entrevista à Associated Press.
Maazel também defendeu a democracia e disse ter levado mensagens de liberdade ao se apresentar na União Soviética ou na Alemanha Oriental, nos tempos do comunismo.
Esses detalhes passaram batido para o "Washington Times", jornal relevante por seu caricatural conservadorismo.
"Maazel está agindo sob os efeitos do veneno do multiculturalismo", disse ao jornal Paul Lake, um dos editores do site "First Things". John Mahlmann, diretor da Associação Nacional de Educação Musical, declarou ser "lamentável que tudo o que sai do pódio de Maazel não tenha a mesma credibilidade que a sua música".
O tablóide "New York Post" bateu também. Escreveu editorial em que qualificou o concerto da Filarmônica em Pyongyang de "uma desgraça".
Em verdade, Lorin Maazel tem um currículo em defesa dos direitos humanos bem mais intenso que o de seus detratores. Ele é o autor de uma ópera estreada há dois anos em Londres, "1984", baseada no romance homônimo de George Orwell e que é uma crítica afiada aos regimes totalitários.
Maazel e diretores da Filarmônica obtiveram das autoridades norte-coreanas a aceitação de todas as suas condições.
Escolheriam o programa, que inclui peças de Richard Wagner, Antonin Dvorak, e George Gershwin. Interpretarão o hino da Coréia do Norte, mas também o americano ("The Star Spangled Banner"). A TV norte-coreana retransmitirá o concerto, e os 1.500 lugares do anfiteatro não serão ocupados apenas por dignitários do regime. O concerto será transmitido na Europa e nos EUA.
O fato de o governo americano não patrocinar a turnê torna ligeiramente forçada a expressão "diplomacia musical", que o "New York Times" empregou. Mas foi inevitável a lembrança da ida da Filarmônica a Moscou, em 1959, na Guerra Fria.
No caso da Coréia do Norte, é plausível que o governo americano tenha dado sinal verde em razão da reaproximação de Pyongyang com o Japão, China, Rússia e ocidentais, depois da decisão de desmantelar suas instalações nucleares.


Com agências internacionais


Texto Anterior: Radicais têm células urbanas e evitam mídia
Próximo Texto: EUA buscam ajustes com Austrália
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.