São Paulo, domingo, 24 de abril de 2005

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AMÉRICA LATINA

Peru e Bolívia têm governos fracos, Argentina se isola e fronteira entre Colômbia e Venezuela é tensa

Crise evidencia instabilidade regional

ELIANE CANTANHÊDE
COLUNISTA DA FOLHA

Lucio Gutiérrez foi o terceiro presidente do Equador a ser deposto em uma década e expõe um quadro preocupante: a América do Sul, principal pilar da ousada política externa brasileira, é porosa, insegura, instável. Um pilar, portanto, que seria insuficiente para sustentar o sonho de liderança internacional do governo Lula.
O Equador vive uma crise crônica e sem perspectiva de melhora. Na Bolívia, o presidente Carlos Mesa ameaçou renunciar e mantém um equilíbrio precário. No Peru o presidente Alejandro Toledo só sobrevive no cargo por um acordo com a oposição para empurrar seu governo com a barriga até as eleições em 2006.
Há, ainda, a tensão permanente nas fronteiras entre a Colômbia e a Venezuela, países que simbolizam, respectivamente, o pró e o antiamericanismo na região. E ambas são muito bem armadas. O polêmico presidente venezuelano, Hugo Chávez, por exemplo, acaba de fechar a compra de US$ 1 bilhão em armamentos e se deixar fotografar com uma milícia popular de 30 mil homens.
Para a diplomacia brasileira, é também preocupante a tendência da Argentina -o mais estratégico parceiro do Brasil- de se isolar dos demais vizinhos sul-americanos, inclusive enviando apenas o segundo escalão para reuniões regionais. Na última reunião de chanceleres, o argentino Rafael Bielsa simplesmente não apareceu. O presidente Néstor Kirchner, que enfrentou o FMI (Fundo Monetário Internacional) e forçou uma redução drástica da dívida do país, é considerado "voluntarioso". Aliás, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seus antecessores Fernando Henrique Cardoso e José Sarney fizeram ácidas referências a Kirchner durante o vôo que fizeram para o enterro do papa João Paulo 2º no Vaticano. Criticaram seu "temperamento difícil e imprevisível".

Já foi pior
No discurso do Planalto e do Itamaraty, há uma boa e uma má notícia. A boa é que a situação da América do Sul já esteve bem pior em 2003, ano da posse de Lula. A má é que tudo continua muito ruim. "O que se vai fazer? A realidade é essa, é preciso conviver com ela", diz o principal expert do Planalto e do PT em América Latina, Marco Aurélio Garcia, assessor internacional de Lula.
Naquele ano, em 17 de outubro, o presidente Gonzalo Sánchez de Losada foi deposto na Bolívia depois de ruidosas manifestações populares contra sua política econômica, classificada de "neoliberal" e atrelada demais aos EUA.
A Venezuela discutia a realização de um referendo para abreviar ou não o mandato de Chávez, que ele depois viria a ganhar. A Argentina fazia a transição de Eduardo Duhalde para Kirchner, político sem posição ideológica definida e, então, uma incógnita. No Uruguai, o então presidente Jorge Batlle era muito menos alinhado com o governo Lula do que o atual, de Tabaré Vazquez.
Por fim, Álvaro Uribe estava testando forças na Colômbia ao implantar a linha dura prometida durante a campanha eleitoral, contra a violência, os grupos guerrilheiros e a tese, defendida por setores liberais, de abrir um Estado dentro do Estado para conferir uma espécie de independência às Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia).
Na posse de Lula, assim, o clima geral era de incerteza. Hoje, quase dois anos e meio depois, só há certezas. Uma delas é que, depois da "redemocratização" e do fim dos regimes militares, há duas décadas, o continente ainda não encontrou seu rumo. "A instabilidade é uma realidade da América do Sul há muito tempo e não existe uma resposta mágica, até porque cada país é um país. Olhando o conjunto da região, é preciso mais diálogo, mais integração, mais desenvolvimento, mais oportunidade para todos e menos dependência de fora", diz o chanceler Celso Amorim, sem explicitar a interferência americana na região.
Ainda na sua opinião, essa relação de dependência "acaba criando uma dicotomia nos países: uma classe muito rica ligada ao exterior convivendo com uma grande maioria em situação de indigência". Poderia completar: daí essa onda de manifestações populares capazes de, daqui e dali, derrubarem presidentes.
O equatoriano Gutiérrez é o décimo que não concluiu o mandato nos últimos 15 anos, um deles no próprio Brasil: Fernando Collor de Mello, que recebeu a oposição, por exemplo, dos estudantes "caras pintadas" e renunciou para evitar o impeachment.
Nos países andinos, a insurreição popular é composta, principalmente, pelos indígenas. Mas, mais uma vez, o caso da Venezuela é bem diferente. Apesar de todas as críticas contra ele e de todas as suas investidas contra instrumentos clássicos de liberdade e democracia -como a própria imprensa-, Chávez inverteu a lógica dos vizinhos: os ricos e com alta escolaridade são contra ele; os pobres e indígenas, a favor. Também ao contrário dos demais, ninguém pode lhe negar legitimidade. Se Gutiérrez e Toledo se elegeram com apoio da esquerda e se bandearam para a direita e aderiram à política chamada de "neoliberal", Chávez mantém o mesmo discurso com que foi eleito.
E, se eles e o boliviano Mesa sempre se equilibraram em baixos índices de popularidade, Chávez se elegeu em 1998, depois se submeteu a uma segunda eleição para confirmar o mandato, voltou ao poder depois de 48 horas afastado por um golpe e reafirmou o mandato no referendo do ano passado. No caso de Mesa, que é elogiado pela diplomacia brasileira como homem "moderno" e "equilibrado", seu grande desafio é conseguir o bom senso do Congresso na votação de uma nova lei para o petróleo e o gás, sustentação da frágil economia local.
Depois de Gutiérrez, porém, não estão previstas novas quedas e deposições, até por um motivo bem objetivo: seis dos 12 países da América do Sul têm eleições presidenciais previstas para 2006. Além de Brasil, o Peru, a Colômbia, a Venezuela, o Chile e o Equador. Em alguns casos, como o de Toledo no Peru, houve uma espécie de pacto: o de deixar o governo desmilingüir-se até acabar por "morte natural" na eleição. O Equador "matou" o seu presidente. O Peru e a Bolívia podem estar convivendo com "mortos-vivos".


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