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AMÉRICA LATINA
Peru e Bolívia têm governos fracos, Argentina se isola e fronteira entre Colômbia e Venezuela é tensa
Crise evidencia instabilidade regional
ELIANE CANTANHÊDE
COLUNISTA DA FOLHA
Lucio Gutiérrez foi o terceiro
presidente do Equador a ser deposto em uma década e expõe um
quadro preocupante: a América
do Sul, principal pilar da ousada
política externa brasileira, é porosa, insegura, instável. Um pilar,
portanto, que seria insuficiente
para sustentar o sonho de liderança internacional do governo Lula.
O Equador vive uma crise crônica e sem perspectiva de melhora. Na Bolívia, o presidente Carlos
Mesa ameaçou renunciar e mantém um equilíbrio precário. No
Peru o presidente Alejandro Toledo só sobrevive no cargo por um
acordo com a oposição para empurrar seu governo com a barriga
até as eleições em 2006.
Há, ainda, a tensão permanente
nas fronteiras entre a Colômbia e
a Venezuela, países que simbolizam, respectivamente, o pró e o
antiamericanismo na região. E
ambas são muito bem armadas. O
polêmico presidente venezuelano, Hugo Chávez, por exemplo,
acaba de fechar a compra de US$ 1
bilhão em armamentos e se deixar
fotografar com uma milícia popular de 30 mil homens.
Para a diplomacia brasileira, é
também preocupante a tendência
da Argentina -o mais estratégico parceiro do Brasil- de se isolar dos demais vizinhos sul-americanos, inclusive enviando apenas o segundo escalão para reuniões regionais. Na última reunião de chanceleres, o argentino
Rafael Bielsa simplesmente não
apareceu. O presidente Néstor
Kirchner, que enfrentou o FMI
(Fundo Monetário Internacional)
e forçou uma redução drástica da
dívida do país, é considerado "voluntarioso". Aliás, o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva e seus
antecessores Fernando Henrique
Cardoso e José Sarney fizeram
ácidas referências a Kirchner durante o vôo que fizeram para o enterro do papa João Paulo 2º no
Vaticano. Criticaram seu "temperamento difícil e imprevisível".
Já foi pior
No discurso do Planalto e do
Itamaraty, há uma boa e uma má
notícia. A boa é que a situação da
América do Sul já esteve bem pior
em 2003, ano da posse de Lula. A
má é que tudo continua muito
ruim. "O que se vai fazer? A realidade é essa, é preciso conviver
com ela", diz o principal expert do
Planalto e do PT em América Latina, Marco Aurélio Garcia, assessor internacional de Lula.
Naquele ano, em 17 de outubro,
o presidente Gonzalo Sánchez de
Losada foi deposto na Bolívia depois de ruidosas manifestações
populares contra sua política econômica, classificada de "neoliberal" e atrelada demais aos EUA.
A Venezuela discutia a realização de um referendo para abreviar ou não o mandato de Chávez,
que ele depois viria a ganhar. A
Argentina fazia a transição de
Eduardo Duhalde para Kirchner,
político sem posição ideológica
definida e, então, uma incógnita.
No Uruguai, o então presidente
Jorge Batlle era muito menos alinhado com o governo Lula do que
o atual, de Tabaré Vazquez.
Por fim, Álvaro Uribe estava
testando forças na Colômbia ao
implantar a linha dura prometida
durante a campanha eleitoral,
contra a violência, os grupos
guerrilheiros e a tese, defendida
por setores liberais, de abrir um
Estado dentro do Estado para
conferir uma espécie de independência às Farc (Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia).
Na posse de Lula, assim, o clima
geral era de incerteza. Hoje, quase
dois anos e meio depois, só há certezas. Uma delas é que, depois da
"redemocratização" e do fim dos
regimes militares, há duas décadas, o continente ainda não encontrou seu rumo. "A instabilidade é uma realidade da América do
Sul há muito tempo e não existe
uma resposta mágica, até porque
cada país é um país. Olhando o
conjunto da região, é preciso mais
diálogo, mais integração, mais desenvolvimento, mais oportunidade para todos e menos dependência de fora", diz o chanceler Celso
Amorim, sem explicitar a interferência americana na região.
Ainda na sua opinião, essa relação de dependência "acaba criando uma dicotomia nos países:
uma classe muito rica ligada ao
exterior convivendo com uma
grande maioria em situação de indigência". Poderia completar: daí
essa onda de manifestações populares capazes de, daqui e dali, derrubarem presidentes.
O equatoriano Gutiérrez é o décimo que não concluiu o mandato
nos últimos 15 anos, um deles no
próprio Brasil: Fernando Collor
de Mello, que recebeu a oposição,
por exemplo, dos estudantes "caras pintadas" e renunciou para
evitar o impeachment.
Nos países andinos, a insurreição popular é composta, principalmente, pelos indígenas. Mas,
mais uma vez, o caso da Venezuela é bem diferente. Apesar de todas as críticas contra ele e de todas
as suas investidas contra instrumentos clássicos de liberdade e
democracia -como a própria
imprensa-, Chávez inverteu a
lógica dos vizinhos: os ricos e com
alta escolaridade são contra ele; os
pobres e indígenas, a favor. Também ao contrário dos demais,
ninguém pode lhe negar legitimidade. Se Gutiérrez e Toledo se elegeram com apoio da esquerda e se
bandearam para a direita e aderiram à política chamada de "neoliberal", Chávez mantém o mesmo
discurso com que foi eleito.
E, se eles e o boliviano Mesa
sempre se equilibraram em baixos índices de popularidade, Chávez se elegeu em 1998, depois se
submeteu a uma segunda eleição
para confirmar o mandato, voltou
ao poder depois de 48 horas afastado por um golpe e reafirmou o
mandato no referendo do ano
passado. No caso de Mesa, que é
elogiado pela diplomacia brasileira como homem "moderno" e
"equilibrado", seu grande desafio
é conseguir o bom senso do Congresso na votação de uma nova lei
para o petróleo e o gás, sustentação da frágil economia local.
Depois de Gutiérrez, porém,
não estão previstas novas quedas
e deposições, até por um motivo
bem objetivo: seis dos 12 países da
América do Sul têm eleições presidenciais previstas para 2006.
Além de Brasil, o Peru, a Colômbia, a Venezuela, o Chile e o Equador. Em alguns casos, como o de
Toledo no Peru, houve uma espécie de pacto: o de deixar o governo
desmilingüir-se até acabar por
"morte natural" na eleição. O
Equador "matou" o seu presidente. O Peru e a Bolívia podem estar
convivendo com "mortos-vivos".
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