São Paulo, domingo, 24 de junho de 2007

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No Líbano, instituto trata os traumas de crianças palestinas

Garotos e garotas atendidos por entidade vieram do campo de Nahr el Bared, onde conflito deixou mais de 150 mortos

Ansiedade, desânimo, medo de barulho e de escuro, falta de apetite, fome excessiva e a lembrança dos mortos são traços comuns entre vítimas

TARIQ SALEH
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA, DE TRÍPOLI

Há uma amoreira atrás do instituto Beit Atfal Assumoud, que atende crianças palestinas no campo de refugiados de Beddawi, no norte do Líbano. Mas a árvore não estava solitária. Havia crianças, muitas, que brincavam ao seu redor e comiam suas frutas. Seria algo comum não fosse outro detalhe: elas também comiam as folhas.
O Beit Atfal Assumoud cuida de 180 crianças do campo palestino de Nahr el Bared, onde militantes radicais do Fatah al Islam e o Exército libanês se enfrentaram em um mês de combate que deixou mais de 150 mortos (ao menos 20 deles civis) encerrado nesta semana.
O conflito obrigou mais de 17 mil palestinos a deixarem suas casas. "Para que as crianças não sejam afetadas por este clima depressivo, resolvemos iniciar atividades para mantê-las ocupadas", afirma o presidente da entidade, Kassem Aina, 58.
O instituto foi criado em 1976 e possui um centro em cada um dos 12 campos palestinos do Líbano. As crianças recebem apoio vocacional, atividades educacionais, atendimento dentário e psicológico. A ONG recebe doações de entidades de várias partes do mundo, mas recusa ajuda governamental.
No terceiro dia do conflito em Nahr el Bared, os 24 funcionários do centro em Beddawi, apoiados por mais 38 voluntários de ambos os campos, começaram a trazer as crianças do vizinho Nahr el Bared para atividades em turnos. Coordenadora dos trabalhos, Dalal Shahour, 45, diz que a idade delas vai de 3 a 13 anos e que fazem exercícios físicos, desenho, pintura, dança e música.
Nas paredes estão os desenhos -sangue, morte e destruição é o que mais se vê. "Este é o estado emocional delas. Os desenhos, em sua maioria, envolvem o seus traumas", afirma.
Shahour explica que os voluntários passam nas escolas da ONU (onde refugiados estão abrigados) e casas a partir das 9h e trazem as crianças para atividades até o meio-dia. "Aqui elas recebem lanche e frutas. Ainda é pouco, pois há muita gente. Por causa do conflito, o campo dobrou sua população [era de 18 mil] e os suprimentos não são suficientes para todos". Além das crianças de Nahr el Bared, o centro atende outras 120 de Beddawi. "Mas elas agora ficam em casa, para que demos suporte às outras, em situação emergencial."
A voluntária Leila Hamoud, 19, conta que as crianças chegam com fome. "Algumas passaram dois dias sem comida." O grande número de pessoas, segundo a Cruz Vermelha, dificultou a entrega de alimentos. "A amoreira estava carregada. Não demorou até comeram tudo. Agora comem as folhas."
O psiquiatra libanês Jacques Hureiki, 46, atende refugiados de Nahr el Bared. Ele também viu as crianças comendo folhas. "A situação fez elas sentirem ansiedade, fome." Para ele, levará ao menos um mês para se recuperarem. "Ainda assim, precisarão tomar medicamentos por cerca de seis meses."
Hureiki lista os sintomas mais comuns nas crianças: desânimo, medo de barulho e de escuro, falta de apetite ou fome em excesso e a lembrança das imagens de mortos. "Elas sofrem de estresse pós-traumático. Só atividades e medicamentos podem fazê-las esquecer a experiência ruim que tiveram."
Jihad Sehaile, 9, estava na sala, sentado, sem banho havia três dias. Cabisbaixo, olhar triste, sua única palavra foi "oi". Ele viu o pai ser morto por fragmentos de artilharia do Exército libanês. A mãe e a irmã, de 17 anos, sobreviveram. Momentos antes, Jihad rodeava a amoreira. Ele comia folhas.


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