São Paulo, domingo, 24 de agosto de 2008

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Diário de bordo

Na estrada

Milho, não eleições, domina América profunda, em rota de 1.500 km de alienação

Sérgio Dávila, entre Denver (Colorado) e St. Paul (Minnesota)

É quase outro país, um lugar mágico em que não há uma disputa para presidente, mas para ver quem fala mais de milho.
A Folha percorreu de carro os 1.550 km que separam Denver, no Colorado, onde Barack Obama será consagrado o candidato do Partido Democrata nesta semana, de St. Paul, em Minnesota, onde John McCain aceitará a indicação do Partido Republicano na primeira semana de setembro. A paisagem entre os dois locais é monotemática: milho.
Milharal. Usinas de álcool de milho. Turbinas movidas a vento que ajudam na manutenção de fazendas de milho. Políticos movidos a milho, do subsídio dado pelo governo norte-americano ao combustível feito da planta. Água, também, mas a necessária na irrigação do plantio do milho.
Quem anda pela estrada I-80 de oeste a leste e, a partir de Des Moines, em Iowa, na I-35 de sul a norte -duas das principais veias que cortam o chamado Cinturão do Milho, de onde sai metade da produção do grão e quase a totalidade do etanol do país inteiro-, vai encontrar muito pouca referência às convenções e às eleições de 4 de novembro.
No trajeto todo, duas placas podem ser consideradas mais ou menos engajadas. Uma dizia que cachorros aprendem, políticos não, numa fazenda de Minnesota; outra, em Nebraska, pedia que a sodomia fosse declarada prática ilegal.
É quase como se os quatro Estados em questão -Nebraska e Iowa, além das sedes das convenções-, com seu total de 31 votos no Colégio Eleitoral, ou mais de 10% dos 270 necessários para que um dos candidatos vença, não importassem. Mas os candidatos sabem que não é assim, ainda mais numa disputa tão apertada.
Iowa já foi visitado dezenas de vezes pelos dois só neste ano, a mais recente na sexta retrasada por McCain, que foi à tradicional Feira Anual. Obama se declarou candidato do partido num comício em St.Paul, em junho. Colorado está sendo disputado ponto a ponto. O democrata abriu dois escritórios em Nebraska, que não vota no partido desde 1964.
1
A ÁGUA

O trajeto começa em Denver, em que um assunto tira os locais do sério. E não é o esquema de segurança com que a polícia promete receber os manifestantes durante os quatro dias da Convenção Democrata, nem o centro de triagem para o qual levará os presos, já apelidado de Guantánamo.
Os cinco milhões de coloradenses querem saber o que vai acontecer com seu produto mais precioso, a água. O Estado, cujo lema extra-oficial é "uísque é para beber, água é para brigar", é um dos signatários do Acordo de 1922 do Rio Colorado, que dividiu em partes iguais a produção da bacia desse rio entre sete Estados.
Acontece que, nos últimos anos, Estados-pêndulo que viram sua população explodir, como Nevada e Novo México, querem rever o acordo, assim como o Arizona de John McCain. Ele esteve por aqui há duas semanas e disse que o tratado "tem de ser renegociado".
Depois disso, o senador pode se despedir dos votos daqui. É o que me diz Jody Berger, da ONG progressista Progress Now. "O fato de ele dizer isso demonstra a falta de cuidado de McCain para com a população local." Obama ainda não se pronunciou sobre o assunto. Nas pesquisas agregadas pelo site Real Clear Politics, os dois estão empatados no Estado, com 45,8% para o democrata e 45,3% para o republicano.
- Em quem você vai votar?
- Só vou decidir depois das convenções. Quero ver que tipo de confusão vão aprontar na cidade, como os políticos locais vão reagir e acho que preciso conhecer mais os candidatos.
(Denise Mease, 49, dona de sete restaurantes em Denver)

2
O MILHO

Ao sair do Colorado e entrar em Nebraska pela cidade de Ogallala, conhecida por ser uma das paradas do pioneiro serviço postal Pony Express, o FedEx do Velho Oeste, o viajante deve deixar para trás não suas esperanças, mas a possibilidade de ver outra coisa que não milharal.
O Estado é o segundo maior produtor de álcool dos EUA, me informa a associação local. É também um dos redutos republicanos mais sólidos do país. Com exceção de 1964, quando votou no democrata Lyndon Johnson, Nebraska é republicano desde 1940. Mas Barack Obama pretende repetir aqui a mesma técnica que o fez vencedor nas primárias.
É que o Estado é um dos dois dos EUA em que os votos do Colégio Eleitoral não vão todos para o vencedor, mas são divididos proporcionalmente. Obama está de olho nos distritos em torno de Omaha, a maior cidade, em que aparece bem em pesquisas recentes.
Está amparado pelo omahano mais ilustre, Warren Buffett, que vem a ser também o homem mais rico do mundo, segundo a revista "Forbes", com US$ 62 bilhões. Fica aqui a sede de sua empresa, Berkshire Hathaway, com faturamento mundial de US$ 260 bilhões e mais de 60 subsidiárias.
O empresário de 76 anos ainda não declarou apoio oficial a Obama, mas realiza eventos de arrecadação de fundos para sua campanha. Cheguei a Omaha cinco dias depois de um jantar dado por Buffett para arrancar dinheiro da elite local. Foi concorridíssimo.
A mesma animação não pode ser sentida nas camadas mais baixas. Naquele dia, uma senhora oferecia um chá da tarde para seus companheiros obamistas. Quando fui me registrar, era o terceiro. À noite, no bar de um dos principais hotéis, jovens vestidos de camisetas pretas falavam alto. "Eu fiquei a dois metros dele!", gritava um, entusiasmado. Aos poucos, vencendo a pouca iluminação, fui enxergando melhor.
Nas camisetas, nada de slogans de campanha. Uma dizia "sente sua bunda em algo com classe" e trazia o logo da Harley Davidson. Um garçom me informou: a banda heavy metal britânica Def Leppard havia acabado de se apresentar na cidade, junto ao roqueiro Billy Idol. O "ele" a que se referia o rapaz era o Idol britânico, não o ídolo político.
No dia seguinte, numa palestra na universidade estadual local, o senador democrata Ben Nelson voltaria ao assunto que tira o sono do Estado hoje: álcool. "Eu admito que o feito a partir de milho não é perfeito, mas ele tem sido culpado por praticamente todos os problemas do mundo. Vão culpá-lo de causar o que mais? Resfriados de verão? Vírus de computador? Penteados ruins?"
Foi por conta de Nelson e para não alienar a poderosa bancada do milho que Obama votou a favor da manutenção tanto do subsídio ao produtor local quanto da tarifa cobrada do produto brasileiro. McCain foi mais corajoso e declarou num evento em Iowa que era contra a taxação do álcool do Brasil.
Nelson diria depois: a tarifa só cairá "sobre meu cadáver".
- Em quem você vai votar?
- Não acho certo responder a perguntas pessoais no trabalho. De qualquer maneira, não me sinto confortável falando sobre minha opção política.
(Funcionária que se recusa a dizer o nome no Buffalo Bill Ranch, em North Platte)

3
O VENTO

Já na I-35 e já em Iowa, rumo ao norte, o susto. Imensas hélices quixotescas começam a brotar do meio dos milharais. São as turbinas movidas a vento, forma de energia alternativa que começa a ganhar força no Estado que é o maior produtor de álcool do país.
Nos últimos cinco anos, o número de fazendas e empresas em geral que usam esse tipo de energia decuplicou, me diz Bill Haman, gerente de programas industriais do Iowa Energy Center, que usa incentivos fiscais estaduais para financiar os projetos. "Turbinas de vento estão virando commodities de Iowa tão valiosas quanto o milho e a soja", afirma ele.
Pode ser. Mas, com mais de dois terços da viagem vencidos e centenas de postos pelo caminho, um traço comum chama a atenção: até agora, nenhum deles oferece álcool ao consumidor. Há gasolina de três tipos, diesel e até biodiesel, mas não álcool. Em Clear Lake, aparece o primeiro a oferecer o E-85, mistura de 85% do biocombustível com 15% de gasolina.
Encontrá-lo é tirar a sorte grande. Há 170 mil pontos de venda de gasolina nos EUA; apenas 1.500 oferecem álcool.
- Em quem você vai votar?
- Já sabia que ia votar no candidato republicano, não importava quem fosse. Como foi decidido que é o John Mccain, é nele. Não gosto das políticas domésticas dos democratas. Eles aumentam os impostos.
(Brian Bownes, 54, diretor executivo do Museu John Wayne, na cidade natal do ator, em De Soto)

4
ESPERANÇA, MINNESOTA

St. Paul, ponto final da viagem, mostra timidamente os preparativos para a convenção republicana. Talvez porque o aparato policial não seja tão evidente, já que poucos manifestantes são esperados. Chama a atenção a romaria ao banheiro masculino do aeroporto internacional. Muitos querem conhecer onde o senador republicano Larry Craig, de Idaho, foi preso, acusado de "conduta libidinosa" diante de um policial à paisana. Ele nega.
Poucos quilômetros antes, porém, duas cidades fazem um comentário involuntário. A primeira é Hope, "esperança", que tem no nome o slogan de Obama. É seguida por Clinton Falls, as Quedas de Clinton, no sentido de cachoeira. Aqui, a disputa foi apertada nas primárias. O senador teve oito votos; Hillary teve seis.
- Em quem você vai votar?
- Obama. Sempre voto na pessoa que vai fazer o melhor trabalho para o país.
(Lori Nelson, 48, dona do café Straight River, em Hope)


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