São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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ÁFRICA

Após desfilar nas passarelas de Paris, princesa exilada pretende voltar a seu país com plataforma de reforma social

Princesa do Burundi quer concorrer à Presidência

MEERA SELVA
DO "INDEPENDENT"

O brilho e a elegância do mundo da moda parisiense ficam muito distantes dos sangrentos conflitos tribais do Burundi, mas Esther Kamatari, 53, ex-modelo e princesa burundinesa exilada, está determinada a retornar do primeiro para o segundo país.
A elegante e franca princesa da moda, que foi a primeira supermodelo negra da França nos anos 70, está disputando a Presidência nas primeiras eleições livres de seu país natal em uma década.
Ainda que tenha vivido na Europa nos últimos 34 anos, ela quer levar o Burundi de volta a uma forma mais antiga e tradicional de vida, mesmo que isso signifique o retorno da monarquia.
"Vivemos unidos por 500 anos sem que ninguém usasse um facão para matar o vizinho, porque havia uma administração do poder, um equilíbrio social e econômico baseado na tradição", disse. "O rei era o pai do povo."
As palavras da princesa podem encontrar adeptos entre os seis milhões de habitantes do Burundi, que vivem um amargo conflito étnico desde que 1972, quando o último rei, tio de Kamatari, foi morto.
O partido de Kamatari, Abahuza, ou União, foi reconhecido oficialmente pelo Ministério do Interior burundinês no mês passado, e a princesa, que culpa os colonizadores de Burundi pela imposição de divisões étnicas ao país, afirma que a missão do partido é conseguir que "os burundineses se reconciliem consigo mesmos".

Conflitos étnicos
A política do Burundi no momento gira em torno das tensões entre os hutus, que são 85% da população, e os tutsis, que, embora representem apenas 14% da população, dominam instituições como o Exército.
Kamatari vem da "ganwa", ou classe real, que se vê nem como tutsi nem como hutu, e espera que esse status a coloque acima das lealdades tribais e permita que conquiste votos de ambos os grupos étnicos.
Se Kamatari obtiver sucesso em sua campanha, ela voltará ao pequeno e montanhoso país que deixou 34 anos atrás, depois que muitos membros de sua família foram assassinados, e assumirá um posto cujos ocupantes têm baixa expectativa de vida.
O primeiro presidente democraticamente eleito do Burundi foi assassinado em outubro de 1993 depois de apenas quatro meses no cargo. O pai de Kamatari foi assassinado em uma conspiração palaciana em 1964, dois anos depois que o país conquistou a independência. Ela deixou o Burundi em 1970, depois de concluir seus estudos.
Na vida nova que construiu em Paris, Kamatari se tornou modelo de Christian Dior, Paco Rabanne e da Maison Lanvin. Seu 1,79 metro de altura e sua notável beleza lhe deram acesso a um setor então ainda dominado por mulheres brancas. A princesa descreve seu sucesso como resultado de estar no lugar certo em momento afortunado. "Cheguei na hora certa, os estilistas estavam à procura de sangue novo."
Enquanto ela desfilava saias de seda e sapatos altos na Europa, o Burundi e os países vizinhos na região dos grandes lagos africanos lutavam por encontrar uma forma de governo que pudesse abarcar as tribos tutsi e hutu.
Burundi entrou em guerra civil em 1993 e, depois do genocídio em Ruanda em 1994, as tribos hutu e tutsi em Burundi travaram batalhas que causaram a morte de 300 mil pessoas. O conflito também expulsou mais de um milhão de habitantes de seus lares, levando-os a se refugiar, em sua maioria, na vizinha Tanzânia.

Plataforma
Kamatari retomou contato com sua terra natal a partir de 1987, quando criou o plano "Burundi Expansion", uma tentativa fracassada de relançar a indústria do turismo no país.
Três anos mais tarde, assumiu a presidência de uma organização humanitária francesa que fornecia assistência ao Burundi e assumiu o título de "princesa do rugo" (uma casa tradicional burundinesa), envolvendo-se intensamente com trabalhos de caridade em benefício dos órfãos tutsi e hutu.
Sua campanha eleitoral tem por plataforma a reforma social. Cerca de 90% da população do Burundi ainda depende da agricultura de subsistência, e apenas 50% das crianças vão à escola.
"Em um país onde as pessoas continuam armadas até os dentes, as crianças não têm escolas e o sistema de saúde é inexistente, precisamos combater a privação social", disse.
No começo do ano, partidos políticos ligados a ambas as tribos assinaram um novo acordo de divisão de poder, para servir como base a uma nova Constituição.
Como parte do acordo, eleições gerais deveriam ter sido realizadas neste mês, mas foram adiadas até abril de 2005 porque os partidos políticos não conseguem chegar a um acordo quanto aos termos da nova Carta.
Centenas de tutsis do norte do Burundi já fugiram para a vizinha Ruanda, temendo que a violência volte a irromper caso os partidos envolvidos não consigam chegar rapidamente a um acordo sobre suas diferenças.


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