São Paulo, sábado, 24 de novembro de 2007

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ARTIGO

Prioridade ao terror afasta EUA da Ásia

SYLVIE KAUFFMANN
DO "MONDE"

Durante sua primeira campanha eleitoral, em 2000, o então candidato George W. Bush foi interrogado sobre a política externa dos EUA num debate televisionado. "Quem é o presidente do Paquistão?" perguntou o jornalista. Bush apresentou o ar sem jeito de um aluno que deixou de fazer sua lição de casa. "É um general", conseguiu articular, com a sobrancelha franzida pela concentração. "Ele acaba de ser eleito. Ahn... em todo caso, assumiu o poder. Mas ele vai estabilizar o país, sem dúvida."
Mu-shar-raf. Sete anos mais tarde, George Bush não está prestes a se esquecer desse nome, não mais que o general está prestes a estabilizar seu país, apesar dos US$10 bilhões recebidos dos EUA desde 2001 em nome da "guerra mundial contra o terrorismo". Os atentados do 11 de Setembro e a guerra no Afeganistão transformaram Musharraf no melhor amigo de Washington na região.

Amigo imperfeito
Amigo imperfeito, é verdade, mas elo essencial do dispositivo anti-Al Qaeda. As reivindicações democráticas da oposição paquistanesa colocaram a administração Bush numa posição delicada: como continuar a apoiar esse elo essencial na luta antiterrorista sem negligenciar a promoção da democracia, que também é, pelo menos teoricamente, um elemento essencial da doutrina Bush?
A crise paquistanesa se soma a uma longa lista de reveses sofridos pela política americana na Ásia, que praticamente deixam na sombra o sucesso das negociações sobre a Coréia do Norte. O grande vizinho do Paquistão, Índia, está voltando a questionar o acordo de cooperação nuclear que mantém com os EUA, porque o primeiro-ministro Manmohan Singh não quer correr o risco de fazer explodir sua frágil coalizão parlamentar com a esquerda apenas para salvar a amizade da Índia com os Estados Unidos. Esse acordo era apresentado em Washington como histórico nas relações com a Índia, diante da ascensão da China.
Mais a leste, o governo do Japão deu ordem de meia-volta aos navios que desde 2001 garantiam o apoio e o fornecimento de combustível à frota americana no oceano Índico. Essa missão, altamente simbólica para um país pacifista devido ao apoio diplomático que garantia à política americana de luta contra o terrorismo, corre perigo em função da oposição do Partido Democrata do Japão. Tanto em Nova Déli como em Tóquio, é a impopularidade da equipe Bush que levou os governos favoráveis à colaboração com Washington a enfrentar dificuldades no plano doméstico.

Segundo plano
A idéia predominante na Ásia é que a guerra no Iraque e a obsessão americana pela "guerra ao terror" monopolizaram as forças e a energia dos americanos, deixando outras questões em segundo plano. A secretária de Estado, Condoleezza Rice, cancelou de última hora sua participação no Fórum Regional Asiático, em Manila, em função de preocupações mais urgentes no Oriente Médio, e o presidente Bush avisou que não iria a uma cúpula dos países do Sudeste Asiático em setembro passado. George Bush tentou recuperar o atraso em Sydney, em setembro, na cúpula do Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico. "A prova de que os senhores são amigos muito próximos", disse ele, "é que convido a todos a virem a Crawford".
Ninguém duvida da atração representada por um fim-de-semana no rancho presidencial texano, mas o convite que, de quebra, foi estendido também ao número 1 de Mianmar, não parece ter sido recebido com entusiasmo delirante.
Consta que o presidente da Indonésia, Susilo Bambang Yudhyono (o SBY), o teria achado pouco atraente. Tudo isso seria divertido se a questão dissesse respeito apenas a atritos de egos. Mas a ausência de engajamento e de criatividade americanas na Ásia tem conseqüências. Em Mianmar, a rigidez da política de sanções privou Washington de suas alavancas para atuar sobre a junta militar. Hoje, é à China que a comunidade internacional se volta para fazer pressão sobre Mianmar.
E, no Sudeste Asiático, é também a China que preenche o vazio diplomático. Uma ofensiva de charme de Pequim, somada aos interesses econômicos de ambas as partes, reforçou o peso da China em países que, não obstante, têm laços fortes com os EUA, especialmente em matéria de segurança. "A Indonésia e o Paquistão são vitais para derrotar o terrorismo", lembrou recentemente o ministro da Defesa, Robert Gates. É essa a crítica que se faz aos americanos: que enxergam tudo através do prisma do terrorismo. Muitos asiáticos querem também falar de meio ambiente, mudanças climáticas, cooperação econômica e comércio. Em duas palavras: do chamado "soft power".


Tradução de CLARA ALLAIN


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