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São Paulo, terça-feira, 25 de março de 2003

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A verdade chocante

ROBERT FISK
DO "THE INDEPENDENT"

O s exércitos anglo-americanos andam entregando ao Iraque sua propaganda política de bandeja. Primeiro, no sábado, ouvimos da BBC que Umm Qasr, um pequeno porto iraquiano no Golfo Pérsico, tinha "caído". Então nos disseram -mais uma vez foi a BBC- que Nassiriah tinha sido capturada. Em seguida, o correspondente da BBC nos informou que a cidade tinha sido "assegurada" -e meu velho desconfiômetro jornalístico começou a apitar.
O porquê de a BBC utilizar a enganosa expressão militar "assegurada" também é um enigma para mim. A idéia é que "assegurada" soe quase como "capturada", mas o fato é que o termo significa que a cidade foi semicercada, que o Exército, no máximo, entrou em sua periferia. Dito e feito: menos de 24 horas depois, a cidade muçulmana xiita situada a oeste da junção dos rios Tigre e Eufrates mostrava estar muito "desassegurada". Na realidade, pelo menos 500 soldados iraquianos continuavam a resistir dentro dela, tendo o apoio de tanques.
Com que alegria o vice-presidente iraquiano, Taha Yassin Ramadan, informou a nós todos, ontem, que "eles alegaram ter capturado Umm Qasr, mas agora vocês sabem que é mentira". Com que felicidade Mohamed Said Al Sahaff, o ministro da Informação, se gabou ontem de que Basra "continua em mãos do Iraque", que "nossas forças" em Nassiriah continuavam a lutar.
E eles podiam perfeitamente se gabar, já que, apesar de todo o papo furado falado por americanos e britânicos no Qatar, o que os iraquianos disseram a esse respeito era verdade. As alegações iraquianas usuais de que teriam derrubado aeronaves americanas e britânicas -quatro supostamente abatidas perto de Bagdá e uma quinta na região de Mosul- ganharam credibilidade pelo fato de o Iraque ter conseguido provar que o suposto colapso de suas forças no sul do país era falso.
Sabemos que os EUA estão mais uma vez utilizando munições de urânio enfraquecido no Iraque, como fizeram em 1991. Ontem a BBC nos disse que os fuzileiros navais americanos tinham convocado um avião A-10 para combater "bolsões de resistência" -mais um exemplo de jargão militar empregado pela BBC-, mas deixou de mencionar que o A-10 usa munição de urânio enfraquecido. Assim, pela primeira vez desde 1991, nós -o Ocidente- estamos espalhando aerossóis de urânio em explosões em campos de batalha no sul do Iraque, e ninguém está nos informando disso. Por que não?
E de onde, pelo amor de Deus, vem essa frase infeliz e totalmente desonesta "forças da coalizão"? Não existe coalizão nenhuma nesta guerra do Iraque. Há os americanos, os britânicos e um punhado de australianos. E só.
A "coalizão" formada na Guerra do Golfo de 1991 não existe. Esta é uma guerra anglo-americana. Os iraquianos são astutos o suficiente para se lembrarem disso. Num primeiro momento, anunciaram que militares americanos ou britânicos capturados seriam tratados como mercenários, decisão essa que o próprio Saddam corrigiu ontem, quando declarou que todos os prisioneiros serão tratados de acordo com as Convenções de Genebra.
O fim de semana não foi muito bom para Bush e Blair. Tampouco para Saddam, é claro, embora ele já esteja acostumado com isso. E mesmo os jornalistas mais corajosos que vêm tentando verificar o que está acontecendo por conta própria, sem a proteção de seus exércitos -como a equipe da ITV que estava perto de Nassiriah- correm perigo de vida.
Aqui vai, então, a pergunta que atormenta alguém que acreditava ser possível que Bagdá pudesse cair e que todos nós pudéssemos acordar e encontrar o Exército iraquiano dissolvido e os americanos andando pela rua Saadun, portando fuzis nos ombros. Se os iraquianos conseguem resistir por quatro dias contra uma força tão avassaladora em Umm Qasr, se conseguem continuar a resistir em Basra e Nassiriah, por que as forças de Saddam não devem continuar a combater em Bagdá?
A história iraquiana não será completa sem uma nova história de "martírio" na batalha do país contra forças estrangeiras de ocupação. Seja qual for o destino de Saddam, os combatentes de Umm Qasr serão tema de lendas e canções no futuro. Os egípcios fizeram o mesmo com seus homens mortos em Suez, em 1956.
É claro que tudo talvez não passe de erro de cálculo. É possível que o castelo de cartas iraquiano seja mais frágil. Mas a guerra rápida e fácil, o conflito do "choque e pavor" -a frase utilizada pelo Pentágono é um slogan tirado das páginas da revista nazista "Signal"- já não parece ser tão realista assim. As coisas estão dando errado. Não estamos dizendo a verdade. E os iraquianos estão se beneficiando disso.


Tradução de Clara Allain


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