|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
IRAQUE SOB TUTELA
Escritora que faz sucesso com heroínas do Oriente Médio vê perda de direitos femininos no Iraque pós-Saddam
"Mulheres árabes perpetuam discriminação"
LUCIANA COELHO
DA REDAÇÃO
A voz da americana Jean P. Sasson, segundos antes dócil e paciente, se enche de raiva. "Uma
vez salvei uma mulher praticamente escravizada", conta, do outro lado da linha. "Roubei seu
passaporte, arrisquei-me a ser
presa, mandei-a de volta para seu
país e passei a enviar-lhe US$ 200
por mês, soma razoável para os
padrões locais. Ela estudou, casou-se, teve um filho e depois
uma filha." Segundos de silêncio.
"Mas não queria gastar um centavo com a filha, escrevia dizendo
que a menina estava consumindo
os recursos que deveriam ir para o
filho. Acabou entregando a criança para ser criada por monges."
Sasson é escritora. Narra a história de personagens reais. O objeto de seus romances são mulheres árabes. E o objeto de sua ira,
explícito na pequena narrativa da
qual diz haver "milhões e milhões" de versões semelhantes,
não se resume a maridos tacanhos e governos autoritários.
"O problema é que as mulheres
nessa região tendem a se dedicar
mais aos filhos do que às filhas.
Apesar de estarem infelizes com
suas vidas por terem sido forçadas a fazer o que não queriam,
elas reproduzem esse comportamento com suas meninas. Vejo a
toda hora: o filho recebe uma boa
educação, o melhor pedaço de
carne, o carro novo", lamenta.
A única saída efetiva que a escritora vê é que as mulheres reajam
por si só, ainda que reconheça que
as restrições sejam muitas. "É preciso que haja uma mulher da própria região que inspire as demais
a começar a mudar as coisas."
Sauditas e iraquianas
Sasson viveu 12 anos na Arábia
Saudita, onde trabalhou na administração de um hospital e diz ter
formado uma ampla rede de conhecidas entre 1978 e 1990. Desde
então, divide sua vida entre Atlanta, no sudeste americano, e longas
estadas no Oriente Médio e na
Ásia Central, onde chega a passar
quatro meses por ano. Diz ter visto e ouvido histórias horríveis, das
quais fez uma causa que passou a
defender com pungência. E livros.
Best-sellers, como a Trilogia da
Princesa, que nos anos 90 era recorrente em listas de mais vendidos. "Minha editora britânica diz
que criei um gênero", brinca.
Suas heroínas vêm de famílias
ricas ou influentes, mas cujas histórias nem por isso são menos
dramáticas.
Com textos um tanto açucarados e de apelo popular, atraiu a
atenção de um público amplo para um tema com o qual, há uma
ou duas décadas, ele não estava
familiarizado. É uma romancista,
não uma analista. Apresenta-se
"no meio do caminho" em termos políticos. Mas suas contextualizações históricas, sociais e
políticas atentas e precisas são de
dar inveja a estudiosos.
No último livro, "Mayada, Filha
do Iraque" (recém-lançado no
Brasil pela Best Seller), faz da história de uma jornalista iraquiana
de família nobre, presa sob o regime de Saddam Hussein, um retrato detalhadíssimo do Iraque pré-guerra e um panorama do passado do país antes do ditador.
Ela conheceu Mayada al Askari
em 1998, em uma visita ao país
durante a qual a jornalista e dona
de gráfica serviu-lhe como intérprete. A via-crúcis da iraquiana
começaria no ano seguinte, com
sua prisão sob a acusação de usar
sua gráfica para imprimir propaganda contra o regime.
Se a invasão do Iraque pelos
EUA e a derrubada de Saddam,
deram a Mayada, que hoje vive na
Jordânia, tranqüilidade para divulgar sua história, ela ainda não
lhe trouxe segurança para voltar
ao país natal, afirma Sasson. "Ela
estava planejando voltar ao Iaque,
para ir atrás de suas companheiras de cela, mas as coisas ficaram
tão violentas que Mayada começou a temer como ficariam seus filhos se lhe acontecesse algo", diz.
Deterioração
Não é só a violência. Para a escritora, a situação das iraquianas,
relativamente boa em termos de
equiparação de direitos com os
homens para os parâmetros da
região sob Saddam, piorou muito.
"A situação dos direitos femininos tem evoluído de maneira diferente em cada país da região. Vi
grande melhoras na Jordânia, e
algumas, em termos de educação,
na Arábia Saudita. No Afeganistão, onde era horrível sob o Taliban, melhorou um pouco em Cabul [capital], mas não muito no
interior. E no Líbano, um amigo
brinca que as mulheres agora
"mandam" nos homens. Mas o
Iraque certamente é um dos países que estão retrocedendo nesse
aspecto", afirma.
Ela cita o domínio dos xiitas,
que perfazem 60% da população
iraquiana mas eram reprimidos
pelo sunita Saddam, como uma
razão. "Eles são mais conservadores em termos de costume do que
os sunitas", observa. "Não estou
dizendo que preferia Saddam,
mas, quando eu estive lá, em 1998,
fiquei impressionada. As mulheres estavam entre as mais livres do
mundo árabe. Trabalhavam, dirigiam, tomavam decisões. Agora,
quando ligo a TV e surgem iraquianas, vejo-as usando véu pela
primeira vez, coisa que eu não via
em 1998." Ela diz que seu temor
vai além do véu, embora não haja
indício concreto que o justifique.
"Eles [xiitas] não querem que as
mulheres participem [da política]
como antes."
Sasson, no entanto, é cautelosa
em dividir as culpas. "Tendo direito ou não, os países ocidentais
já assumiram um papel na região", pondera. "Se você vai lá e
muda um sistema de maneira tão
drástica, não dá para simplesmente sair de perto. Há responsabilidades a assumir", diz. "Espero
que não tenhamos ido até lá, matado, morrido, feito todo tipo de
coisa num outro país para depois
sair e deixar 50% da população
em condições piores do que as
que ela se encontrava antes."
Para ela, a situação dos iraquianos "era horrível antes e horrível
agora", ainda que de modos diferentes. "Eles têm liberdade de
pensar e falar, mas medo de sair à
rua e morrer em uma explosão de
carro-bomba."
A escritora cita conversas quase
diárias com iraquianos para afirmar que vê o país está à beira de
uma guerra civil. "Se [os EUA]
sairmos hoje, tenho certeza de
que haverá guerra civil. A única
coisa a evitar isso hoje, acho, é o
clérigo xiita [aiatolá Ali al] Sistani,
que é um força norteadora, sábio
e tranqüilo. Mas está velho. O que
acontecerá quando ele morrer?"
Texto Anterior: Alemanha: Para acadêmico, Bem-Estar Social determinou voto Próximo Texto: Panorâmica - EUA: Cheney passa bem após cirurgia para aneurismas Índice
|