São Paulo, domingo, 25 de setembro de 2005

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IRAQUE SOB TUTELA

Escritora que faz sucesso com heroínas do Oriente Médio vê perda de direitos femininos no Iraque pós-Saddam

"Mulheres árabes perpetuam discriminação"

LUCIANA COELHO
DA REDAÇÃO

A voz da americana Jean P. Sasson, segundos antes dócil e paciente, se enche de raiva. "Uma vez salvei uma mulher praticamente escravizada", conta, do outro lado da linha. "Roubei seu passaporte, arrisquei-me a ser presa, mandei-a de volta para seu país e passei a enviar-lhe US$ 200 por mês, soma razoável para os padrões locais. Ela estudou, casou-se, teve um filho e depois uma filha." Segundos de silêncio. "Mas não queria gastar um centavo com a filha, escrevia dizendo que a menina estava consumindo os recursos que deveriam ir para o filho. Acabou entregando a criança para ser criada por monges."
Sasson é escritora. Narra a história de personagens reais. O objeto de seus romances são mulheres árabes. E o objeto de sua ira, explícito na pequena narrativa da qual diz haver "milhões e milhões" de versões semelhantes, não se resume a maridos tacanhos e governos autoritários.
"O problema é que as mulheres nessa região tendem a se dedicar mais aos filhos do que às filhas. Apesar de estarem infelizes com suas vidas por terem sido forçadas a fazer o que não queriam, elas reproduzem esse comportamento com suas meninas. Vejo a toda hora: o filho recebe uma boa educação, o melhor pedaço de carne, o carro novo", lamenta.
A única saída efetiva que a escritora vê é que as mulheres reajam por si só, ainda que reconheça que as restrições sejam muitas. "É preciso que haja uma mulher da própria região que inspire as demais a começar a mudar as coisas."

Sauditas e iraquianas
Sasson viveu 12 anos na Arábia Saudita, onde trabalhou na administração de um hospital e diz ter formado uma ampla rede de conhecidas entre 1978 e 1990. Desde então, divide sua vida entre Atlanta, no sudeste americano, e longas estadas no Oriente Médio e na Ásia Central, onde chega a passar quatro meses por ano. Diz ter visto e ouvido histórias horríveis, das quais fez uma causa que passou a defender com pungência. E livros. Best-sellers, como a Trilogia da Princesa, que nos anos 90 era recorrente em listas de mais vendidos. "Minha editora britânica diz que criei um gênero", brinca.
Suas heroínas vêm de famílias ricas ou influentes, mas cujas histórias nem por isso são menos dramáticas.
Com textos um tanto açucarados e de apelo popular, atraiu a atenção de um público amplo para um tema com o qual, há uma ou duas décadas, ele não estava familiarizado. É uma romancista, não uma analista. Apresenta-se "no meio do caminho" em termos políticos. Mas suas contextualizações históricas, sociais e políticas atentas e precisas são de dar inveja a estudiosos.
No último livro, "Mayada, Filha do Iraque" (recém-lançado no Brasil pela Best Seller), faz da história de uma jornalista iraquiana de família nobre, presa sob o regime de Saddam Hussein, um retrato detalhadíssimo do Iraque pré-guerra e um panorama do passado do país antes do ditador.
Ela conheceu Mayada al Askari em 1998, em uma visita ao país durante a qual a jornalista e dona de gráfica serviu-lhe como intérprete. A via-crúcis da iraquiana começaria no ano seguinte, com sua prisão sob a acusação de usar sua gráfica para imprimir propaganda contra o regime.
Se a invasão do Iraque pelos EUA e a derrubada de Saddam, deram a Mayada, que hoje vive na Jordânia, tranqüilidade para divulgar sua história, ela ainda não lhe trouxe segurança para voltar ao país natal, afirma Sasson. "Ela estava planejando voltar ao Iaque, para ir atrás de suas companheiras de cela, mas as coisas ficaram tão violentas que Mayada começou a temer como ficariam seus filhos se lhe acontecesse algo", diz.

Deterioração
Não é só a violência. Para a escritora, a situação das iraquianas, relativamente boa em termos de equiparação de direitos com os homens para os parâmetros da região sob Saddam, piorou muito.
"A situação dos direitos femininos tem evoluído de maneira diferente em cada país da região. Vi grande melhoras na Jordânia, e algumas, em termos de educação, na Arábia Saudita. No Afeganistão, onde era horrível sob o Taliban, melhorou um pouco em Cabul [capital], mas não muito no interior. E no Líbano, um amigo brinca que as mulheres agora "mandam" nos homens. Mas o Iraque certamente é um dos países que estão retrocedendo nesse aspecto", afirma.
Ela cita o domínio dos xiitas, que perfazem 60% da população iraquiana mas eram reprimidos pelo sunita Saddam, como uma razão. "Eles são mais conservadores em termos de costume do que os sunitas", observa. "Não estou dizendo que preferia Saddam, mas, quando eu estive lá, em 1998, fiquei impressionada. As mulheres estavam entre as mais livres do mundo árabe. Trabalhavam, dirigiam, tomavam decisões. Agora, quando ligo a TV e surgem iraquianas, vejo-as usando véu pela primeira vez, coisa que eu não via em 1998." Ela diz que seu temor vai além do véu, embora não haja indício concreto que o justifique. "Eles [xiitas] não querem que as mulheres participem [da política] como antes."
Sasson, no entanto, é cautelosa em dividir as culpas. "Tendo direito ou não, os países ocidentais já assumiram um papel na região", pondera. "Se você vai lá e muda um sistema de maneira tão drástica, não dá para simplesmente sair de perto. Há responsabilidades a assumir", diz. "Espero que não tenhamos ido até lá, matado, morrido, feito todo tipo de coisa num outro país para depois sair e deixar 50% da população em condições piores do que as que ela se encontrava antes."
Para ela, a situação dos iraquianos "era horrível antes e horrível agora", ainda que de modos diferentes. "Eles têm liberdade de pensar e falar, mas medo de sair à rua e morrer em uma explosão de carro-bomba."
A escritora cita conversas quase diárias com iraquianos para afirmar que vê o país está à beira de uma guerra civil. "Se [os EUA] sairmos hoje, tenho certeza de que haverá guerra civil. A única coisa a evitar isso hoje, acho, é o clérigo xiita [aiatolá Ali al] Sistani, que é um força norteadora, sábio e tranqüilo. Mas está velho. O que acontecerá quando ele morrer?"


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