São Paulo, segunda-feira, 26 de agosto de 2002

Próximo Texto | Índice

SEM CONTROLE

Venda de sangue nos anos 90 contaminou populações de vilarejos e, agora, pais morrem e deixam crianças sozinhas

Aids deixa legião de órfãos na China rural

France Press
Três órfãos da Aids falam sobre a epidemia no interior da China


ELISABETH ROSENTHAL
DO "THE NEW YORK TIMES", EM DONGHU

Os vizinhos ainda se lembram de quando Dong Yangnan era um "xiao pangzi", ou gorduchinho, o tipo de bebê de rosto redondo que as avós chinesas adoram. Hoje, com 12 anos, ele é órfão, magro como um palito e anda vestido em trapos.
No ano passado, sua mãe morreu de Aids. Seu pai, sempre tossindo e febril, sucumbiu da doença em maio. Yangnan mora com seu avô e sobrevive à base de mingau de arroz e pão. "Antes, meus pais tomavam conta de mim", diz, com a voz triste. "Agora tenho que tomar conta de mim mesmo."
A Aids está criando uma explosão de órfãos pobres no interior rural da China e muitas famílias miseráveis, que não conseguem mais alimentar, vestir e muito menos educar seus filhos.
No início do ano passado, não havia órfãos nesse vilarejo da Província de Henan (sul da China). Hoje, por causa da Aids, há quase 20, e outras centenas de crianças devem ter o mesmo destino em um ano ou dois. Moradores estimam que 200 das 600 famílias do vilarejo têm um dos pais morto e o outro doente, frequentemente frágil demais para trabalhar. Eles recebem pouca ajuda do governo.
Segundo estatísticas ainda não publicadas do Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), o número de famílias vivendo abaixo da linha da pobreza em Xincai, o condado que inclui Donghu, disparou no ano passado, de 40 mil para 270 mil. Os chefes de família adoeceram, e as famílias gastaram o que tinham em comida e remédios.
Especialistas dizem que o golpe desferido pela Aids foi mais forte e cruel em vilarejos como Donghu do que em qualquer outro lugar do mundo por causa da forma incomum e eficiente pela qual a doença se espalhou aqui.
A quase totalidade da população adulta de alguns vilarejos foi infectada quase simultaneamente nos anos 90 quando camponeses pobres frequentavam em massa estações de coleta de sangue cujas práticas pouco higiênicas introduziam doses cavalares do HIV, o vírus que causa a Aids, diretamente em suas veias. Agora, as vítimas -incluindo muitos casais- estão adoecendo e morrendo quase em uníssono.
Em outros países sofrendo epidemias, avós ou tios geralmente ajudam os doentes a tomar conta de seus filhos. Mas, aqui, os parentes frequentemente também estão infectados com a Aids. Além disso, como a China limita o número de filhos a um ou dois, raramente há um irmão mais velho para tomar conta dos mais novos.
Alguns especialistas chineses estimam que a prática de vender sangue, comum em dezenas de vilarejos de Henan antes de ser proibida em meados dos anos 90, deixou pelo menos um milhão de pessoas infectadas com o HIV.
Como muitos dos vilarejos mais afetados, Donghu ficava perto de uma estação de coleta de sangue -que tinha ligações com o governo. Comerciais na TV local asseguravam os moradores de que vender seu sangue era seguro.
Para os moradores, vender sangue era uma fonte de renda de emergência -dinheiro rápido para consertar um telhado ou pagar uma dívida.
Os habitantes daqui estimam que mais da metade dos adultos em Donghu foram infectados com o HIV no início dos anos 90. Uma década depois, o índice de mortalidade está acelerando, com várias pessoas morrendo toda semana. Autoridades locais monitoram o acesso ao vilarejo e advertem os moradores a não conversar com repórteres.
"A situação está piorando rapidamente porque, depois que um dos pais morre, o outro fica sobrecarregado e, é claro, todos estão infectados", disse um morador.
A pobreza extrema rápida e previsivelmente se segue, já que os adultos não podem mais trabalhar e vendem tudo o que têm para comprar artigos de primeira necessidade ou medicamentos simples, ineficazes contra a Aids.
Para piorar a situação, os vegetais, frutas e grãos cultivados nesses vilarejos são quase impossíveis de vender em cidades próximas, cujos moradores têm medo de ser contaminados.
"Realmente te faz chorar", afirmou um médico que visitou vilarejos na Província. "Você vê essas casas decentes, compradas com o dinheiro da venda do sangue, mas dentro não há nada. Eles venderam os instrumentos agrícolas, os animais, até os móveis. Os moribundos ficam deitados no chão."
Para famílias como a de Ren Dahua, foi um ciclo vicioso: a pobreza trouxe a Aids, mas a Aids levou a pobreza a níveis inimagináveis.
Ren começou a vender sangue para consertar sua casa feita de barro e tijolo. Quando as estações de coleta de sangue abriram em 1992, ele e sua mulher correram para vender seu sangue, por cerca de US$ 5 o saco. Ele voltou mais de 30 vezes. Quando duas outras estações abriram nas redondezas, ele passou a vender seu sangue quase diariamente.
Na época, o sangue de vários camponeses era misturado e centrifugado para a retirada do plasma, que as estações vendiam a companhias farmacêuticas para elas fabricarem remédios. As células vermelhas que sobravam eram misturadas e injetadas de volta nos vendedores -um método terrivelmente eficiente de transmitir doenças.
Em 1993, Ren e sua mulher, Diao Yuhuan, foram desqualificados como vendedores de sangue porque apresentavam sintomas óbvios de hepatite C: pele amarelada, barrigas inchadas e enjôo constante. Eles não sabiam que também tinham contraído o HIV, cujos sintomas frequentemente demoram anos para aparecer.
No ano passado, Diao contraiu tuberculose. Vendendo tudo o que tinha, Ren conseguiu juntar 3.500 yuans que pagaram por uma breve e inútil estadia de sua mulher em um hospital em Pequim. Ela morreu em casa em janeiro. "Como eu gastei muito dinheiro quando minha mulher estava doente, meus filhos não podem ir à escola", disse Ren.
Não há muitas instituições às quais as famílias podem recorrer. A maioria das pessoas morre sofrendo dores horríveis e sem cuidados médicos. Seus filhos saem da escola e passam fome.
Wang Bebei, 10, uma aluna que ganhou muitas medalhas em sua escola em Suixian, no norte de Henan, foi expulsa da terceira série quando funcionários da escola descobriram que seu pai morrera de Aids. "Eles tinham medo de mim, e minhas amigas pararam de brincar comigo", disse.
Em junho, a mãe de Bebei morreu. Voltar à escola está fora de questão. Não há ninguém para cultivar a terra da família, e ela e seu irmão tentam cuidar um do outro. "Meu irmão cozinha para mim, e comemos macarrão instantâneo", diz a menina. "Não temos dinheiro para comprar ovos ou carne."
A principal preocupação de muitos camponeses não é tentar conseguir tratamento para si próprios, mas assegurar o futuro de seus filhos. Desde o ano passado, Xie Yan, que tem 30 e poucos anos e está infectada com o HIV, tem uma obsessão.
Ela quer encontrar alguém que adote seu filho de quatro anos, que não está contaminado, e alguém para sustentar suas duas filhas, de nove e 13 anos. Seu marido morreu de Aids no início do ano passado.
"Tento não pensar em mim, já que sei que não serei curada", afirmou. "Mas não consigo dormir de noite. Tenho pesadelos de tanta preocupação com o que vai acontecer com as crianças."


Próximo Texto: PC reúne-se em novembro para definir sucessão
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.