São Paulo, quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

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Mãe envia filho à Libéria para protegê-lo

Para refugiada em Staten Island, rapaz estava mais seguro em meio a conflito em seu país natal do que em conjunto habitacional nos EUA

Após testemunhar estupros, fome e a atuação de crianças em combate, Augustus Massalee, 21, teve seu retorno permitido pela mãe

ELLEN BARRY
DO "NEW YORK TIMES"

Quando Augustus Massalee chegou ao aeroporto internacional Kennedy, em Nova York, parecia ter encolhido. Seu rosto estava tão magro que o funcionário da alfândega não o reconheceu pela foto do passaporte. O sotaque, que no passado o identificava como um menino malandro de Staten Island, havia se tornado africano. Misu Sirleaf, a mãe de Augustus, repetia incansavelmente o Salmo 23 -"O Senhor é meu pastor"- enquanto esperava.
Quando o viu, ela o abraçou com tanta força que quase o derrubou. Ela o encarava como se estivesse contemplando uma maravilha.
Augustus, 21, parece-se pouco com o ousado adolescente que partiu quatro anos atrás para a Libéria, um país devastado pela guerra, na África Ocidental. No longo percurso para casa, ele falou sem parar sobre a guerra civil que terminara por envolvê-lo e sobre as crianças-soldados que o forçaram a tirar toda a roupa em uma esquina.
"Pikeen de seis, sete, oito anos de armas na mão", disse Augustus, usando a palavra que designa "criança" no inglês da Libéria. "Pikeen com as armas penduradas no pescoço. Atirando com AK-47. Eu vi, sim."

"Ghostface"
Foi a mãe dele, uma refugiada da Libéria, quem tomou a extraordinária decisão de enviar Augustus de volta para a África. Sirleaf o fez sabendo muito do que ele enfrentaria: a barriga vazia, a ameaça de chibatadas públicas, o senso muito restrito de possibilidade.
Mas ela estava segura de que, na Libéria, ele estaria melhor do que em Park Hill, o bairro de Staten Island no qual ela criava dois filhos e duas filhas. Park Hill recebeu tantas levas de refugiados nos últimos 30 anos que certas pessoas o chamam de "Pequena Libéria".
O bairro abriga entre 3.000 e 4.000 liberianos. Na adolescência, Augustus já havia recebido um apelido de rua (Ghostface) e aderido a uma gangue conhecida como Bloodline, além de conhecido o caminho das drogas no bairro.
Desde que começam a estudar, as crianças africanas aprendem a lutar contra as crianças negras norte-americanas de Stapleton Houses, um conjunto habitacional vizinho. Em junho, quando Augustus retornou de seus quatro anos no exílio, a família se reuniu em torno dele no aeroporto para avaliar se a solução drástica havia funcionado. Wesley Forioh, 14, seu meio-irmão, observava com cautela. Wesley é um menino americanizado e joga futebol americano em sua escola.
Sirleaf, 45, trabalha como assistente de enfermagem e ficou feliz com o que viu: um jovem temente a Deus, de calças bem passadas e tão absorto no sofrimento da terra natal que sua minúscula mala voltou lotada de DVDs sobre a Libéria.
Enquanto o carro da família percorria lentamente a distância que separa o aeroporto de Staten Island, Hawah, uma prima de 13 anos, tinha uma mensagem a transmitir sobre Park Hill: meninos mais velhos estavam tentando se aproximar de Wesley, oferecendo tênis novos em troca de favores, ela disse. "Você sabe que os seus amigos continuam indo ao apartamento para procurar você?", perguntou."Você sabia que quase todos agora são traficantes?" O aluguel baixo e o isolamento transformaram Park Hill em um ponto ideal de distribuição de drogas. Os traficantes recebem avisos sempre que um carro de polícia entra na avenida Park Hill, conta o inspetor Richard Bruno, que comanda a 120ª delegacia de polícia, encarregada de patrulhar a área.
E quando os filhos dos imigrantes africanos voltavam da escola, à tarde, traficantes nascidos nos Estados Unidos tentavam recrutar alguns.

Escolha materna
Não era incomum que Musu Sirleaf enviasse os filhos para férias na Libéria, e em maio de 2003 ela enviou Augustus. O vôo chegou à Libéria no meio da noite, e o rapaz demorou a perceber que não haveria volta.
Vivendo com o tio na capital liberiana, Monróvia, ele se acostumou a viver sem água corrente ou eletricidade. Quando mascava cana e cuspia o bagaço na rua, crianças famintas corriam atrás para recolher os restos. Também viu adultos caçando esquilos para comer. Ele começou lentamente a mudar. "Se você rouba, termina espancado, morto ou queimado." E o pior estava por vir, com a chegada dos oponentes do ex-presidente Charles Taylor à capital, depois de quatro anos de guerra civil. Augustus viu coisas que ficaram gravadas em sua memória -"pessoas com um braço, uma perna, um olho". Viu soldados estuprando e estripando uma mulher grávida no mercado.
O que ele viu pôs fim à sua rebeldia. Ele se tornou um seguidor devoto da religião e concluiu o segundo grau. No começo do ano, sua mãe considerou que estava pronto a retornar para Nova York. Augustus já não a culpava. "Ela me mostrou como é a vida. A vida é luta."

De volta
Augustus e Wesley passam o dia todo no apartamento 3E, sob rígido controle da mãe. Ele conseguiu emprego como estoquista no começo de setembro. Se tivesse renda, imaginou, poderia começar a remeter dinheiro aos amigos na Libéria. Ainda que uma frágil paz exista no país desde 2003, a maioria dos liberianos depende de dinheiro remetido dos EUA.
Mas, no fim de novembro, o chefe de Augustus ligou para demiti-lo, dizendo que ele faltava e se atrasava demais. O jovem tentou explicar que dependia de duas linhas de ônibus nada confiáveis para chegar ao trabalho, mas não adiantou.
Assim, cinco meses depois de voltar da Libéria, Augustus está de novo passando seus dias em Park Hill, com as cortinas fechadas, vendo basquete na televisão e relembrando seu sonho de jogar como profissional.


Tradução de PAULO MIGLIACCI


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