São Paulo, sexta-feira, 27 de janeiro de 2006

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ANÁLISE

EUA perdem novamente com a "exportação" da democracia

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

A vitória do Hamas nas eleições palestinas representa uma nova pancada na política americana de espalhar a democracia pelo Oriente Médio. Não que os regimes autocráticos tenham alguma afinidade atávica com a região. Mas a forma de fazê-lo -um modelo único para "clientes" de diferente porte histórico- mais uma vez terminou com a vitória de um grupo islâmico radical.
A receita já não vinha dando certo no Iraque, no Líbano, na Arábia Saudita e no Egito. E agora também não deu entre os palestinos de Gaza e da Cisjordânia.
A Casa Branca e o Departamento de Estado não tinham o controle do processo eleitoral naqueles territórios. Mas pressionaram para que o calendário fosse mantido. O presidente palestino, Mahmoud Abbas, defendia adiar a votação, na previsão do desastre político que incorreria.
Queria mais tempo para retocar a imagem profundamente degradada do Fatah e ter algo mais concreto em gestação em seu tênue e bissexto diálogo com Israel, que Washington por sua vez não pressionou para que lhe fizesse alguma concessão.
"O governo americano quer democracia e continua a interpretar a sinfonia da democracia. Agora precisa respeitar o resultado das urnas", disse à Associated Press o zombeteiro Ismail Haniyeh, ontem eleito deputado pelo Hamas.
Washington reage segundo a idéia -teoricamente generosa- de que só a democracia é capaz de estabilizar os países do mundo islâmico e evitar que os Estados entrem em colapso, o que leva à emergência de grupos terroristas.
Na prática, no entanto, o islamismo se tornou o canal para a expressão de uma identidade oprimida por ditaduras laicas que os americanos e o Ocidente apoiaram de modo incondicional durante a Guerra Fria. Essas ditaduras funcionavam na geopolítica de Washington como anteparos ao comunismo.
O primeiro alarme foi dado pelo Irã, em 1979. O regime xiita, um dos mais obscurantistas na história da região, foi implantado ao fim de um levante incontestavelmente popular. Um espanto.
Os outros exemplos são bem mais recentes. O do Iraque é entre eles o mais explosivo. Dilip Hiro, ensaísta indiano radicado em Londres, diz em texto postado anteontem no blog Tom Dispatch que 80% dos deputados eleitos em dezembro pelos xiitas iraquianos têm fortes vínculos com as mesquitas. Proporção semelhante, segundo resultados finais divulgados no último dia 21, emergiu entre os deputados sunitas.
As eleições desejadas pela ocupação militar americana não foram, para os iraquianos, um passo na direção da democracia. Elas acirraram tensões interétnicas e abasteceram a guerra civil.
Hiro também cita o modelo bastante limitado de abertura democrática que Washington pressiona para ser adotado na Arábia Saudita. Pois bem: os wahabitas, uma das comunidades mais sectárias do mundo islâmico, foram os beneficiados na primeira eleição às câmaras municipais.
O Hizbollah -grupo com histórico terrorista- tornou-se o representante, legitimado pelas urnas, da comunidade xiita do Líbano. Os Estados Unidos pressionaram pelo fortalecimento eleitoral dos grupos que se opunham à presença da Síria naquele país. Deu certo, mas só em parte. A nova maioria é liderada por um primeiro-ministro anti-Síria, Fouad Siniora. Mas o fortalecimento do pró-Síria Hizbollah chegou embutido no mesmo pacote.
No Egito, as pressões americanas para que o ditador Hosni Mubarak perfumasse seu regime com um pouco de pluralismo levaram a Irmandade Muçulmana a obter 88 das 150 cadeiras que disputou nas últimas legislativas.
E só não disputou outras porque, se ganhasse, viraria a política egípcia pelo avesso. A irmandade é a matriz histórica do Hamas.


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