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ARTIGO
O ícone branco do Ocidente
CARLOS HEITOR CONY
COLUNISTA DA FOLHA
Alguns papas tornaram-se notáveis e influenciaram decisivamente a história da civilização
universal, que em muitos lances
se confunde com a própria história da igreja. Papas que dirimiram
questões diplomáticas e políticas,
sagraram e consagraram reis e
imperadores, dividiram terras,
formaram países e criaram nações.
Com a complexidade do mundo moderno, não o mundo contemporâneo, mas o mundo surgido com a Reforma de Martinho
Lutero (1483-1546), o papado foi
perdendo esse papel. Como disse
Stálin, "o papa não tem divisões
nem arsenal nuclear".
O sociólogo Andrew M. Greeley
comentou que, "paradoxalmente,
foi o fato de perder o seu tradicional papel político e diplomático
que acabou valorizando o papa
perante os donos temporais da
Terra: sua liderança religiosa, pura e simples, acabou por ter enorme impacto político".
No caso de Karol Wojtyla, ele
nada precisou fazer para criar este
impacto no cenário mundial e até
certo ponto mudar a história do
século 20.
Ainda em 1978, ano em que
João Paulo 2º assumiu o comando
da Igreja Católica, o filósofo marxista Laslek Kolakowski acentuou
que a eleição de "um papa polonês é a primeira brecha aberta na
partilha do mundo feita em Ialta"
(fevereiro de 1945).
Brecha que o próprio João Paulo 2º foi abrindo, inicialmente sozinho, depois em aliança com o
governo Reagan, que teve seu último episódio com a queda do Muro de Berlim.
Bastava este lance para colocar o
atual papa no topo da lista dos
grandes personagens do século
passado.
Acima e além do papel que desempenhou na história de nossos
dias, seu papel mais importante,
obviamente, é como chefe absoluto da igreja, que é absolutista mesmo, nunca se vestiu de democrática, atua em dimensão e tempo
próprios, o que fez dela a instituição mais antiga do Ocidente e, até
agora, ainda a mais sólida.
Igreja do Silêncio
Essa solidez, ameaçada por cismas desde o século 1º de nossa
era, encontrou em João Paulo 2º
um escudo que se forjou não apenas na tradição apostólica de
2.000 anos, mas na formação que
podemos considerar granítica de
sua personalidade de eslavo, vinda da Igreja do Silêncio que, em
alguns momentos, repetiu a clandestinidade das catacumbas,
quando os cristãos cavavam com
as próprias mãos o refúgio onde
pudessem praticar seu culto, colocado fora da lei pelos imperadores
de Roma.
Nada de admirar que Karol
Wojtyla resultasse num papa conservador, disposto a "conservar"
o que, na formação e no processo
da humanidade, merece ser conservado. Nem fazia sentido adotar
a palavra da moda, "progressista", uma vez que era líder espiritual de uma religião cujo núcleo
inamovível, com o qual atravessou 20 séculos, estava formado e
firmado na tradição apostólica.
Como escrevi há pouco, comentando declarações de um cardeal
brasileiro a favor da renúncia do
papa, a igreja não é uma novela de
TV que quando cai a audiência
muda de autor, de atores, de trama, de cenário, de vestuário e de
iluminação para reconquistar os
pontos perdidos.
Um papa que não teme perder
"audiência" ao lembrar a todos os
católicos a existência do Inferno, a
presença do demônio no cotidiano das pessoas, o sexo como instrumento da procriação, e ao condenar repetidamente o aborto e
algumas reivindicações de minorias sexuais. Papa que antes de
mais nada é um homem de oração, um padre que sabe e gosta de
batizar crianças.
(Parêntese pessoal: em 1974, em
Veneza, entrevistei o cardeal Albino Luciani, patriarca daquela cidade, mais tarde João Paulo 1º. Sabendo que Veneza era um celeiro
de futuros papas, perguntei-lhe
como se sentiria se fosse eleito para o trono de são Pedro. Ele sorriu
-seria chamado de "papa-sorriso" porque estava sempre rindo- e respondeu: "Eu gosto de
batizar crianças e lá em Roma não
sabem mais fazer isso".)
"Hipoteca social"
Conservador até a medula, João
Paulo 2º desagradou a numerosas
alas do clero e dos fiéis, mas soube
dar seu recado de forma esplêndida num de seus primeiros pronunciamentos: "O capital exige
uma hipoteca social". Com seis
palavras, fez o resumo de uma encíclica inteira, a "Rerum Novarum".
Independentemente de sua liderança religiosa, de sua atuação
na cena política e diplomática,
João Paulo 2º tornou-se o personagem mais conhecido, reconhecido e de certa forma o mais importante do nosso tempo, acima e
fora dos diversos credos que dividem a humanidade.
Apesar do estilo pétreo que imprime a seu pontificado, formou-se um consenso a seu respeito, devido talvez à sua biografia, à sinceridade de suas convicções, e, por
que não dizer, ao seu visual, que
até mesmo em sua decadência física, fazem dele o ícone branco do
Ocidente.
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