São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTIGO

O ícone branco do Ocidente

CARLOS HEITOR CONY
COLUNISTA DA FOLHA

Alguns papas tornaram-se notáveis e influenciaram decisivamente a história da civilização universal, que em muitos lances se confunde com a própria história da igreja. Papas que dirimiram questões diplomáticas e políticas, sagraram e consagraram reis e imperadores, dividiram terras, formaram países e criaram nações.
Com a complexidade do mundo moderno, não o mundo contemporâneo, mas o mundo surgido com a Reforma de Martinho Lutero (1483-1546), o papado foi perdendo esse papel. Como disse Stálin, "o papa não tem divisões nem arsenal nuclear".
O sociólogo Andrew M. Greeley comentou que, "paradoxalmente, foi o fato de perder o seu tradicional papel político e diplomático que acabou valorizando o papa perante os donos temporais da Terra: sua liderança religiosa, pura e simples, acabou por ter enorme impacto político".
No caso de Karol Wojtyla, ele nada precisou fazer para criar este impacto no cenário mundial e até certo ponto mudar a história do século 20.
Ainda em 1978, ano em que João Paulo 2º assumiu o comando da Igreja Católica, o filósofo marxista Laslek Kolakowski acentuou que a eleição de "um papa polonês é a primeira brecha aberta na partilha do mundo feita em Ialta" (fevereiro de 1945).
Brecha que o próprio João Paulo 2º foi abrindo, inicialmente sozinho, depois em aliança com o governo Reagan, que teve seu último episódio com a queda do Muro de Berlim.
Bastava este lance para colocar o atual papa no topo da lista dos grandes personagens do século passado.
Acima e além do papel que desempenhou na história de nossos dias, seu papel mais importante, obviamente, é como chefe absoluto da igreja, que é absolutista mesmo, nunca se vestiu de democrática, atua em dimensão e tempo próprios, o que fez dela a instituição mais antiga do Ocidente e, até agora, ainda a mais sólida.

Igreja do Silêncio
Essa solidez, ameaçada por cismas desde o século 1º de nossa era, encontrou em João Paulo 2º um escudo que se forjou não apenas na tradição apostólica de 2.000 anos, mas na formação que podemos considerar granítica de sua personalidade de eslavo, vinda da Igreja do Silêncio que, em alguns momentos, repetiu a clandestinidade das catacumbas, quando os cristãos cavavam com as próprias mãos o refúgio onde pudessem praticar seu culto, colocado fora da lei pelos imperadores de Roma.
Nada de admirar que Karol Wojtyla resultasse num papa conservador, disposto a "conservar" o que, na formação e no processo da humanidade, merece ser conservado. Nem fazia sentido adotar a palavra da moda, "progressista", uma vez que era líder espiritual de uma religião cujo núcleo inamovível, com o qual atravessou 20 séculos, estava formado e firmado na tradição apostólica.
Como escrevi há pouco, comentando declarações de um cardeal brasileiro a favor da renúncia do papa, a igreja não é uma novela de TV que quando cai a audiência muda de autor, de atores, de trama, de cenário, de vestuário e de iluminação para reconquistar os pontos perdidos.
Um papa que não teme perder "audiência" ao lembrar a todos os católicos a existência do Inferno, a presença do demônio no cotidiano das pessoas, o sexo como instrumento da procriação, e ao condenar repetidamente o aborto e algumas reivindicações de minorias sexuais. Papa que antes de mais nada é um homem de oração, um padre que sabe e gosta de batizar crianças.
(Parêntese pessoal: em 1974, em Veneza, entrevistei o cardeal Albino Luciani, patriarca daquela cidade, mais tarde João Paulo 1º. Sabendo que Veneza era um celeiro de futuros papas, perguntei-lhe como se sentiria se fosse eleito para o trono de são Pedro. Ele sorriu -seria chamado de "papa-sorriso" porque estava sempre rindo- e respondeu: "Eu gosto de batizar crianças e lá em Roma não sabem mais fazer isso".)

"Hipoteca social"
Conservador até a medula, João Paulo 2º desagradou a numerosas alas do clero e dos fiéis, mas soube dar seu recado de forma esplêndida num de seus primeiros pronunciamentos: "O capital exige uma hipoteca social". Com seis palavras, fez o resumo de uma encíclica inteira, a "Rerum Novarum".
Independentemente de sua liderança religiosa, de sua atuação na cena política e diplomática, João Paulo 2º tornou-se o personagem mais conhecido, reconhecido e de certa forma o mais importante do nosso tempo, acima e fora dos diversos credos que dividem a humanidade.
Apesar do estilo pétreo que imprime a seu pontificado, formou-se um consenso a seu respeito, devido talvez à sua biografia, à sinceridade de suas convicções, e, por que não dizer, ao seu visual, que até mesmo em sua decadência física, fazem dele o ícone branco do Ocidente.


Texto Anterior: Vaticano: Analista vê declínio da influência do papa
Próximo Texto: Opinião: Por que a ONU é importante?
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.