São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2005

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OPINIÃO

Por que a ONU é importante?

KOFI ANNAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

No último ano testemunhei muitos ataques às Nações Unidas. Isso me dói, pois servi à ONU por toda minha vida. Fiz e faço tudo o que posso para corrigir suas imperfeições, melhorá-la e fortalecê-la. Acredito profundamente na importância dessa missão, pois fortalecer a ONU é vital para a humanidade.
Quando o tsunami atingiu o oceano Índico, matando ao menos 150 mil pessoas e destruindo meios de sobrevivência, o presidente George W. Bush agiu rapidamente na formação de um grupo de nações com forças militares na região. Era a coisa certa a fazer.
Mas, quando os envolvidos se reuniram em Jacarta [Indonésia] para planejar e coordenar o esforço multinacional, todos, inclusive os EUA, concordaram que a ONU deveria liderar o processo.
Por quê? Por duas razões. Primeiro, a ONU possui a experiência e a perícia necessárias. Seu escritório para Coordenação de Assuntos Humanitários, que abri em 1997, é designado para exercer esse papel. Segundo, e mais importante, todos queriam trabalhar com a ONU: governos e populações dos países afetados, doadores, grupos sem fins lucrativos. Todos reconheceram que a ONU era a líder natural, já que não pertence a ninguém, mas ao mundo.
Outro exemplo da importância da ONU é o Iraque. Indubitavelmente, a Guerra do Iraque fez com que várias pessoas perdessem a fé na ONU. Os que eram favoráveis à ação militar ficaram desapontados com o fato de o Conselho de Segurança não ter tido, como alegam, a coragem de impor suas resoluções. Os que se opunham à ela ficaram frustrados com a incapacidade da ONU de evitar a guerra.
Mas, quando os EUA e seus aliados quiseram montar uma estrutura iraquiana com amplo apoio nacional e internacional para ajudá-los a administrar o país, eles se dirigiram à ONU e ao meu representante especial, Sérgio Vieira de Mello, solicitando ajuda e orientação. Ele convenceu Paul Bremer [administrador americano] de que deveria ser um conselho de governo, e não um mero órgão consultivo, e persuadiu importantes líderes iraquianos a deixar seus seguidores se juntarem à iniciativa. Vieira de Mello e 21 de seus colegas pagaram com suas vidas pela coragem e determinação de ajudar o povo iraquiano.
Quando a coalizão quis transferir poder para um governo interino, pediu ajuda à ONU novamente. Eles sabiam que somente se a ONU estivesse envolvida na escolha o novo governo poderia ser aceito como legítimo e soberano.
Iraquianos e americanos foram à ONU pedir ajuda para organizar as eleições de janeiro. A ONU ajudou a elaborar a lei eleitoral, a organizar os partidos políticos, a escolher e treinar os membros do comitê eleitoral e centenas de pessoas na criação das listas de eleitores, além de orientar na condução das eleições, na contagem dos votos e no anúncio dos resultados. Novamente, tivemos a experiência necessária: organizamos ou ajudamos a organizar eleições em 92 países. O mais importante foi a legitimidade que nosso envolvimento trouxe. Os resultados de uma eleição organizada por uma coalizão, ou por iraquianos escolhidos por ela, poderiam estar longe de serem aceitos no mundo e provavelmente no Iraque.
Agora iraquianos têm sua própria Assembléia Nacional e terão, em breve, um governo eleito. A Assembléia tem de escrever uma Constituição aceita por todos, e o governo deve isolar seus oponentes mais violentos, ganhando a confiança de grupos que não votaram nas eleições, especialmente árabes sunitas.
A ONU pode ajudar nesse processo e irá ajudar. Podemos dar consultoria na redação da nova Constituição. Podemos alcançar os grupos sunitas que não participaram das eleições, mas desejam ser incluídos nas negociações. Podemos reunir a comunidade internacional em um esforço para auxiliar o Iraque a se reconstruir.
Precisamente porque a ONU não concordou com algumas ações realizadas anteriormente no Iraque, hoje tem a credibilidade e o acesso a grupos iraquianos que devem concordar em se juntar ao novo processo político para que a paz prevaleça. A ONU pode ser útil porque é tida como independente e imparcial. Se algum dia acharem que somos mero instrumento ou prolongação da política externa norte-americana, teremos nos tornado inúteis.
Mesmo quando críticos mal informados tentam atingir a ONU, quem eles afetam não são diplomatas ou burocratas, mas pessoas inocentes no meio da guerra ou da pobreza, que necessitam desesperadamente de ajuda.
Alguns denunciam uma falta de princípios nas decisões, apontando algumas questões que inevitavelmente surgem em um corpo com 191 membros. Qualquer um que ataque a ONU por falhar no serviço dos interesses globais deve antes analisar as decisões individuais de cada país-membro. Encontrarão muitos pontos críticos. Mas devem ter em mente que a ONU, como os EUA e outras grandes democracias, é um sistema em movimento, sempre lutando para estreitar a distância entre a realidade e os ideais que lhe deram vida.
Claro que a ONU está longe da perfeição, mas, mesmo assim, algumas alegações levantadas contra ela foram exageradas. O relatório do grupo de investigação independente coordenado por Paul Volcker ajudou a reordenar o Programa Petróleo por Comida. Muitas das alegações provaram ser mentiras.
Mas sou o primeiro a admitir que fracassos reais, turbulentos lapsos éticos e gerenciamento pernicioso ficaram expostos. Estou determinado, com o auxílio dos Estados-membros, a realizar as reformas administrativas expostas nas conclusões de Volcker.
Ainda mais chocantes são os casos de exploração sexual e abuso de menores por parte de integrantes das forças de paz na África. O Secretariado da ONU e os governos locais foram lentos para medir a extensão do problema, tomar as medidas necessárias para acabar com a situação e punir os culpados. Mas estamos fazendo isso agora e estou determinado a acabar com estas práticas.
A ONU não sobreviverá ao século 21 enquanto todos não perceberem que a organização está fazendo algo para eles, protegendo-os não só de conflitos, mas da pobreza, da fome, das doenças e da degradação do ambiente.
Em setembro, teremos uma oportunidade real de tornar a ONU mais eficiente. Líderes do mundo inteiro se encontrarão em uma reunião de cúpula em Nova York. Apresentarei uma agenda de propostas contundentes, porém possíveis, para que a ONU trabalhe melhor e o mundo seja mais justo e seguro.
Acredito que os norte-americanos queiram o mesmo que qualquer pessoa. Mais do que qualquer um, eles têm o poder para isso se escutarem e trabalharem com os outros e assumirem a liderança. Desejo que eles nos dêem essa liderança, e espero setembro com grande expectativa.


Kofi Annan é secretário-geral da ONU


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