São Paulo, domingo, 27 de fevereiro de 2005

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RÚSSIA

Segundo Yevgenia Albats, âncora de rádio em Moscou, "a liberdade de imprensa tornou-se algo em extinção" no país

Jornalista acusa cerco de Putin à imprensa

MÁRCIO SENNE DE MORAES
DA REDAÇÃO

Poucos meses depois de Vladimir Putin ter sido eleito presidente da Rússia pela primeira vez, em março de 2000, o Kremlin deu início a uma campanha para silenciar a mídia independente e para controlar os meios de comunicação do país, segundo disse à Folha, por e-mail, Yevgenia Albats, professora do departamento de ciência política da Escola Superior de Economia de Moscou e âncora da rádio Echo Moskvy.
"A liberdade de imprensa passou a ser algo em extinção na Rússia depois que Putin se tornou presidente. E a situação ficou muito mais difícil para os jornalistas independentes", disse ela.
Em artigo publicado pelo Centro por Integridade Pública, entidade com sede em Washington, Albats detalha as etapas da campanha supostamente orquestrada pelo Kremlin. "Três meses depois [da eleição presidencial], em junho [de 2000], o então proprietário do conglomerado Media-Most, Vladimir Gusinsky, que se opunha a Putin e apoiara seus rivais na eleição presidencial, se encontrou na cadeia", afirma o artigo de Albats publicado nos EUA.
"À época, o Media-Most controlava um grande segmento do mercado nacional de informação, incluindo uma importante rede de notícias, a NTV, vários canais a cabo, o diário "Segodnya" (hoje), uma revista política semanal chamada "Itogi" (conclusões) e outros meios. Gusinsky foi solto três dias depois graças a um acordo que ficou conhecido como "liberdade por ações" -o magnata da mídia entregou o controle da empresa ao monopólio estatal Gazprom em troca de sua liberdade."
Mais tarde, após ter deixado a Rússia, Gusinsky criticou o acordo. Em 2004, como lembra Albats em seu texto, "a Corte Européia de Estrasburgo confirmou a ilegalidade das ações do Estado [russo] contra ele". Em abril de 2001, a direção da gigante do gás Gazprom despediu os administradores da NTV, forçou seus principais âncoras e repórteres a deixar a empresa, fechou o "Segodnya" e mandou embora toda a Redação da "Itogi". "Desde então, o Media-Most praticamente cessou de existir", lamenta a jornalista.
A campanha do Kremlin também visava dominar, de acordo com ela, a outra grande rede de TV russa, a ORT (Televisão Pública Russa). Esta era, em parte, de propriedade da iniciativa privada. "O Kremlin passou a controlar a ORT em 2001. Ainda é obscuro o modo como o acordo foi feito. Sabe-se que um dos ex-proprietários da ORT, o barão da imprensa e do petróleo Boris Berezovsky, acabou no exílio em Londres", indica o artigo de Albats.
"Enquanto isso, seu sócio, Roman Abramovich -dono da gigante do petróleo Sibneft e o segundo homem mais rico da Rússia, de acordo com a "Forbes'-, adquiriu a parte de Berezovsky na ORT. Então... a Sibneft ganhou direitos exclusivos de exportação da estatal petrolífera Slavneft, e o Estado passou a controlar a ORT."
Abramovic é também dono do Chelsea, time britânico, e Berezovsky é suspeito de ser investidor da MSI no Corinthians.
O controle estatal das maiores redes de TV russas foi relatado na mídia global como parte da guerra de Putin contra os novos ricos, os chamados "oligarcas", que enriqueceram com o processo de privatização da década de 90, ordenado pelo presidente Boris Ieltsin. Albats reconhece que os "oligarcas" tiveram um papel decisivo no que tange à corrupção da imprensa, porém defende a diversidade que existia quando eles comandavam a mídia da Rússia.
"Eles [os "oligarcas"] realmente fizeram uso de seu poder para influenciar e para chantagear o governo. Hoje está claro, contudo, que a diversidade de seus interesses comerciais, que iam do petróleo a metais, passando por bancos e pela imprensa, ao menos permitia a existência de uma pluralidade de opiniões na imprensa russa", afirma o artigo da jornalista, intitulado "Mídia Russa: um Homem Morto ainda Andando".

"Importância estratégica"
Segundo seu texto, "o Kremlin, que tem hoje sob seus auspícios todas as cinco redes de TV de alcance nacional (eram duas quando Ieltsin era presidente) e controla cerca de 90% de toda a imprensa nacional (56,7% em 2000), se comporta como uma empresa fortemente controlada, que não aceita a dissidência".
"No verão [setentrional] passado, Putin assinou um decreto para classificar as principais redes de TV russas de "empresas de importância estratégica" para o Estado. A lista de mais de mil firmas, em sua maioria de propriedade de empresas estatais, proíbe a privatização de qualquer parte das empresas sem uma autorização pessoal do presidente", diz Albats.
A influência do Kremlin também é sentida no cotidiano das empresas de telecomunicações, de acordo com a jornalista russa. No ano passado, "Leonid Parfenov, eminente personalidade da TV e âncora de um popular programa de análises chamado "Namedni", foi despedido depois de veicular uma entrevista com a mulher do líder separatista tchetcheno Zelimkhan Yandarbiyev, que fora assassinado, no Qatar, por agentes russos. Segundo a mídia, alguns agentes da FSB (a sucessora da KGB) eram veementemente contrários à entrevista".
Em junho de 2004, uma corte qatariana condenou dois agentes russos à prisão perpétua pela morte de Yandarbiyev. Moscou negou que os dois agentes tivessem envolvimento com o assassinato. Recentemente, eles foram extraditados para cumprir pena na Rússia. Mas, segundo a Anistia Internacional, estão soltos.
Albats sustenta, em seu artigo publicado nos EUA, que a campanha de Putin não se limita ao setor audiovisual, pois a imprensa escrita também foi alvo de decisões tomadas pelo poder central.
"Em outra medida similar do Kremlin, que nunca foi tornada pública, os maiores jornais e as maiores editoras da nação [russa], incluindo o diário "Izvestia" e o tablóide "Komsomolskaya Pravda", que têm uma circulação regional combinada de mais de 25 milhões [de exemplares], além do popular tablóide semanal "Argumenti i Facti", foram classificados de publicações de importância estratégica para o Estado e, portanto, não poderão ser postos à venda sem a aprovação do Kremlin."
Um dos casos mais recentes diz respeito à cobertura feita pelo diário "Izvestia" da tragédia de Beslan (Ossétia do Norte), onde um seqüestro numa escola realizado por rebeldes tchetchenos acabou com a morte de mais de 300 pessoas, incluindo diversas crianças.
De acordo com Albats, Raf Shakirov, editor do "Izvestia" até setembro de 2004, foi "forçado a pedir demissão" por ter publicado fotografias de página inteira da tragédia de Beslan, o que foi considerado uma "traição" por Putin.


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