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ANÁLISE
Para ex-correspondente de guerra, jornalistas e militares possuem objetivos incompatíveis
Mídia está perdendo batalha, diz analista
MARIA LUIZA ABBOTT
FREE-LANCE PARA A FOLHA, EM LONDRES
A cobertura da guerra no Iraque pela mídia no Reino Unido e
nos EUA está mostrando como é
difícil manter a isenção em meio a
pressões e quando soldados dos
dois países estão arriscando a vida. Nos jornais britânicos predomina a versão dos fatos fornecida
pelos comandos militares britânico e americano.
No último domingo, emissoras
de TV do mundo mostraram as
imagens dos prisioneiros de guerra americanos sendo entrevistados no Iraque -exibidas em primeira mão pelas redes de TV árabes. As emissoras britânicas, que
na véspera tinham mostrado cenas dos prisioneiros de guerra iraquianos, não exibiram as imagens
dos prisioneiros americanos.
Ficaram repetindo entrevista do
secretário de Defesa americano,
Donald Rumsfeld, acusando o governo do Iraque de desrespeito à
Convenção de Genebra -o que
Phillip Knightley chama de "hipocrisia americana".
Escritor, ex-correspondente de
guerra e um dos mais respeitados
analistas da cobertura de guerras
pela mídia, Knightley lembra que
os americanos não observam essa
mesma convenção em relação aos
prisioneiros da rede Al Qaeda,
que estão em Guantánamo.
Mas os telespectadores britânicos com TV a cabo, com acesso a
outras emissoras européias, conseguiram ver as cenas dos presos
americanos, que foram transmitidas em toda a Europa. As TVs britânicas acabaram mostrando as
imagens na segunda-feira.
Knightley observa que essa é
mais uma batalha no "conflito irreconciliável" entre os interesses
da mídia e dos militares em uma
guerra. Mas agora há dois fatores
novos, o surgimento de redes de
televisão árabes e a criação das
PSYOPS (do inglês Psychological
Operations, Operações Psicológicas) pelo Pentágono.
Folha - Quais as principais características da cobertura jornalística
nessa guerra?
Phillip Knightley - A mídia queria que essa fosse a guerra com a
melhor cobertura da história. Milhares de correspondentes de
guerra foram credenciados, e dinheiro não seria problema. Só a
CNN tem um baú de guerra de
US$ 125 milhões para sua batalha
de audiência com a Fox News.
A idéia era que todos os canais
iriam mostrar tudo, ao vivo, em
tempo real, 24 horas por dia. Mas
o objetivo da mídia se chocou
com o objetivo dos militares de
uma guerra administrada muito
diretamente, na qual a mídia receberia muito material, mas não
muita informação de verdade. E
sem cenas de sangue ou morte,
nem mesmo de prisioneiros de
guerra nas telas. Se isso é porque
as bombas aliadas têm a exatidão
que eles falam ou porque ninguém vai poder filmar, não se sabe ainda. Mas o principal é que a
verdadeira face da guerra, nunca
uma coisa bonita, seria escondida
de todos os que não estavam tomando parte nela de verdade. Os
objetivos da mídia e dos militares
são incompatíveis e temo que minhas fichas estão apostadas nos
generais. Os militares parecem estar vencendo. Mas há um elemento novo nessa cobertura, que foi a
chegada das redes de TVs árabes.
Qual a diferença que as redes de
TV árabe fizeram?
Knightley - Pela primeira vez, a
cobertura da guerra na TV não é
monopólio das redes ocidentais
de TV. Já vimos isso com as imagens dos prisioneiros de guerra,
algumas mortes e as reportagens
de dentro de Bagdá e de outros lugares. A imagem que nos trazem
as TVs árabes é muito mais realista. Os aliados não gostam disso. A
outra grande mudança na cobertura da guerra são as atividades de
uma seção do Pentágono chamada PSYOPS.
O que são PSYOPS?
Knightley O Pentágono vinha
preparando a fusão de duas seções da área de relações públicas.
Numa delas, havia o antigo oficial
militar de informações, em quem
o correspondente de guerra podia
confiar porque pelo menos alguns
generais dariam informações verdadeiras. Não necessariamente
muito informativas, mas ele era
capaz de dar uma idéia aproximada do que estava acontecendo. Tinha que ganhar a confiança dos
correspondentes de guerra, então
normalmente falava a verdade na
maior parte do tempo. Mas eles
foram fundidos com uma nova
organização, cuja função é usar
informação como arma para interferir e destruir a moral do inimigo. Todos agora são parte de
uma única organização, que se
chama PSYOPS (sigla do inglês
Psychological Operations, Operações Psicológicas).
Operações para enganar. Como
disse um oficial das PSYOPS, "essa é a guerra de informações mais
intensa que você pode imaginar, e
vamos mentir". Qualquer correspondente de guerra ou leitor vendo o que o Pentágono diz precisa
ter em mente que isso pode ser
uma operação desse tipo.
O sr. pode dar um exemplo?
Knightley Por que o Pentágono
anunciou que tinha havido uma
tentativa de assassinar Saddam
Hussein? Se eles não tivessem
anunciado, ninguém teria ficado
sabendo. Os iraquianos não iriam
querer falar disso e os correspondentes de guerra em Bagdá, tudo
o que teriam ouvido era outra explosão na noite. Então é preciso se
perguntar por que o Pentágono
fez isso. É claro que foi uma
PSYOPS. Ao revelar essa tentativa, eles também revelaram que o
serviço de inteligência americano
tinha informação precisa sobre
onde Saddam e seus auxiliares estavam se reunindo. E isso faz com
que Saddam fique querendo saber quem está traindo seus movimentos. E em segundo, reforça a
idéia na mente dos iraquianos
que os mísseis americanos são tão
precisos que podem acertar uma
determinada casa em Bagdá. No
dia seguinte anunciam que não tinham sido bem-sucedidos, ou
que talvez tenham sido. Ofereceram evidências de que podem ter
tido sucesso: um telefone de
emergência da casa em busca de
uma ambulância e o relato de
uma testemunha dizendo que
Saddam tinha sido visto carregado em uma maca. Isso sugere que
os serviços de inteligência dos
EUA podem fazer escuta eletrônica em telefonemas de emergência
e que seus espiões estão de olho
em lugares onde Saddam pode estar. E há muitos outros.
Folha - Por que o sr. acha que os
prisioneiros de guerra iraquianos
foram exibidos nas TVs em um dia,
mas TVs britânicas e americanas se
recusaram a mostrar os prisioneiros americanos no dia seguinte?
Knightley - Isso é a hipocrisia
americana. Como pode Donald
Rumsfeld (secretário de Defesa
americano) invocar a Convenção
de Genebra? Os americanos não
estão observando a Convenção de
Genebra em relação ao tratamento de todos aqueles prisioneiros
de guerra na Baía de Guantánamo
(onde estão suspeitos de ligação
com a rede Al Qaeda).
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