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São Paulo, quinta-feira, 27 de março de 2003

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ANÁLISE

Para ex-correspondente de guerra, jornalistas e militares possuem objetivos incompatíveis

Mídia está perdendo batalha, diz analista

MARIA LUIZA ABBOTT
FREE-LANCE PARA A FOLHA, EM LONDRES

A cobertura da guerra no Iraque pela mídia no Reino Unido e nos EUA está mostrando como é difícil manter a isenção em meio a pressões e quando soldados dos dois países estão arriscando a vida. Nos jornais britânicos predomina a versão dos fatos fornecida pelos comandos militares britânico e americano.
No último domingo, emissoras de TV do mundo mostraram as imagens dos prisioneiros de guerra americanos sendo entrevistados no Iraque -exibidas em primeira mão pelas redes de TV árabes. As emissoras britânicas, que na véspera tinham mostrado cenas dos prisioneiros de guerra iraquianos, não exibiram as imagens dos prisioneiros americanos.
Ficaram repetindo entrevista do secretário de Defesa americano, Donald Rumsfeld, acusando o governo do Iraque de desrespeito à Convenção de Genebra -o que Phillip Knightley chama de "hipocrisia americana".
Escritor, ex-correspondente de guerra e um dos mais respeitados analistas da cobertura de guerras pela mídia, Knightley lembra que os americanos não observam essa mesma convenção em relação aos prisioneiros da rede Al Qaeda, que estão em Guantánamo.
Mas os telespectadores britânicos com TV a cabo, com acesso a outras emissoras européias, conseguiram ver as cenas dos presos americanos, que foram transmitidas em toda a Europa. As TVs britânicas acabaram mostrando as imagens na segunda-feira.
Knightley observa que essa é mais uma batalha no "conflito irreconciliável" entre os interesses da mídia e dos militares em uma guerra. Mas agora há dois fatores novos, o surgimento de redes de televisão árabes e a criação das PSYOPS (do inglês Psychological Operations, Operações Psicológicas) pelo Pentágono.
 

Folha - Quais as principais características da cobertura jornalística nessa guerra?
Phillip Knightley
- A mídia queria que essa fosse a guerra com a melhor cobertura da história. Milhares de correspondentes de guerra foram credenciados, e dinheiro não seria problema. Só a CNN tem um baú de guerra de US$ 125 milhões para sua batalha de audiência com a Fox News.
A idéia era que todos os canais iriam mostrar tudo, ao vivo, em tempo real, 24 horas por dia. Mas o objetivo da mídia se chocou com o objetivo dos militares de uma guerra administrada muito diretamente, na qual a mídia receberia muito material, mas não muita informação de verdade. E sem cenas de sangue ou morte, nem mesmo de prisioneiros de guerra nas telas. Se isso é porque as bombas aliadas têm a exatidão que eles falam ou porque ninguém vai poder filmar, não se sabe ainda. Mas o principal é que a verdadeira face da guerra, nunca uma coisa bonita, seria escondida de todos os que não estavam tomando parte nela de verdade. Os objetivos da mídia e dos militares são incompatíveis e temo que minhas fichas estão apostadas nos generais. Os militares parecem estar vencendo. Mas há um elemento novo nessa cobertura, que foi a chegada das redes de TVs árabes.

Qual a diferença que as redes de TV árabe fizeram?
Knightley
- Pela primeira vez, a cobertura da guerra na TV não é monopólio das redes ocidentais de TV. Já vimos isso com as imagens dos prisioneiros de guerra, algumas mortes e as reportagens de dentro de Bagdá e de outros lugares. A imagem que nos trazem as TVs árabes é muito mais realista. Os aliados não gostam disso. A outra grande mudança na cobertura da guerra são as atividades de uma seção do Pentágono chamada PSYOPS.

O que são PSYOPS?
Knightley
O Pentágono vinha preparando a fusão de duas seções da área de relações públicas. Numa delas, havia o antigo oficial militar de informações, em quem o correspondente de guerra podia confiar porque pelo menos alguns generais dariam informações verdadeiras. Não necessariamente muito informativas, mas ele era capaz de dar uma idéia aproximada do que estava acontecendo. Tinha que ganhar a confiança dos correspondentes de guerra, então normalmente falava a verdade na maior parte do tempo. Mas eles foram fundidos com uma nova organização, cuja função é usar informação como arma para interferir e destruir a moral do inimigo. Todos agora são parte de uma única organização, que se chama PSYOPS (sigla do inglês Psychological Operations, Operações Psicológicas).
Operações para enganar. Como disse um oficial das PSYOPS, "essa é a guerra de informações mais intensa que você pode imaginar, e vamos mentir". Qualquer correspondente de guerra ou leitor vendo o que o Pentágono diz precisa ter em mente que isso pode ser uma operação desse tipo.

O sr. pode dar um exemplo?
Knightley
Por que o Pentágono anunciou que tinha havido uma tentativa de assassinar Saddam Hussein? Se eles não tivessem anunciado, ninguém teria ficado sabendo. Os iraquianos não iriam querer falar disso e os correspondentes de guerra em Bagdá, tudo o que teriam ouvido era outra explosão na noite. Então é preciso se perguntar por que o Pentágono fez isso. É claro que foi uma PSYOPS. Ao revelar essa tentativa, eles também revelaram que o serviço de inteligência americano tinha informação precisa sobre onde Saddam e seus auxiliares estavam se reunindo. E isso faz com que Saddam fique querendo saber quem está traindo seus movimentos. E em segundo, reforça a idéia na mente dos iraquianos que os mísseis americanos são tão precisos que podem acertar uma determinada casa em Bagdá. No dia seguinte anunciam que não tinham sido bem-sucedidos, ou que talvez tenham sido. Ofereceram evidências de que podem ter tido sucesso: um telefone de emergência da casa em busca de uma ambulância e o relato de uma testemunha dizendo que Saddam tinha sido visto carregado em uma maca. Isso sugere que os serviços de inteligência dos EUA podem fazer escuta eletrônica em telefonemas de emergência e que seus espiões estão de olho em lugares onde Saddam pode estar. E há muitos outros.

Folha - Por que o sr. acha que os prisioneiros de guerra iraquianos foram exibidos nas TVs em um dia, mas TVs britânicas e americanas se recusaram a mostrar os prisioneiros americanos no dia seguinte?
Knightley
- Isso é a hipocrisia americana. Como pode Donald Rumsfeld (secretário de Defesa americano) invocar a Convenção de Genebra? Os americanos não estão observando a Convenção de Genebra em relação ao tratamento de todos aqueles prisioneiros de guerra na Baía de Guantánamo (onde estão suspeitos de ligação com a rede Al Qaeda).


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